A arte tem disso: despreza a ignorância e atinge profundamente os que simplesmente se dispõem a ver ou sentir. Tenho uma amiga que, sem qualquer conhecimento de história da arte, visitando o museu do Louvre ficou paralisada diante da escultura da Vitória de Samotrácia. Levou um susto, diria ela, com a intrepidez e a soberania da figura feminina, alada, no topo de uma escadaria do museu parisiense. Na minha fase de paixão por Alberta Hunter, tive uma empregada, analfabeta, que interrompia a limpeza da sala para ouvir, emocionadíssima, a intérprete americana cantando The glory of love. Não sabia uma palavra de inglês.
O rosário de experiências corre o risco de ser longo, mas devo contar que certa vez, também no Louvre, enquanto eu me postava concentrada diante da Mona Lisa, uma menina de seus dez para doze anos, olhando para mim, intrigada, devolvia o olhar para o quadro, sondava o grupo de um modo geral, até que, virando-se para o pai, em busca de motivo para tamanha contenção, profanou o silêncio dos que se espremiam em frente à obra famosa dizendo em voz bem alta: papá, que tiene de especial?
Mas vale o desconto: a menininha ainda nem saíra da infância, enquanto eu me propus aqui a confessar que desconhecia muitos dos nomes mais importantes da fotografia quando vim trabalhar no IMS em final de 2009. Ao longo desses quatro anos tenho me encantado com as mulheres caranguejeiras de Maureen Bisilliat, as máquinas de Flieg e as solidões de Copacabana retratadas por José Medeiros, dentre outros fotógrafos.
Nenhum deles me arrebatou tanto quanto Haruo Ohara. A primeira vez que ouvi falar do fotógrafo japonês foi quando Rachel Rezende, da coordenadoria de fotografia do IMS, pronunciou seu nome referindo-se ao documentário que Rodrigo Grota fizera sobre ele. Rachel falava do artista com uma naturalidade humilhante, e eu, sem ter ideia desse homem que chegara a São Paulo em 1927, beirando os 18 anos de idade, com os pais, e seis anos depois se fixava em Londrina, no Paraná, não pude esperar para perguntar quem era “o” Haruo a quem ela tratava com tanta intimidade. Pouco depois vi o catálogo de 2008, ano em que os 18 mil negativos que constituem sua extraordinária obra chegaram ao IMS. Na lojinha da Casa, eu o indiquei como presente de amigo oculto de 2011. Indiquei para mim mesma, quero dizer, que é como costumamos fazer aqui, para facilitar o amigo que presenteará. Foi assim que o meu querido João Gabriel me garantiu o prazer de ter na minha casa, sentada no meu sofá, sempre que eu quiser, as translúcidas jabuticabas que Haruo Ohara fotografou na sua casa da rua São Jerônimo.
Eu tinha caído de amores pelos frutos desde que os vi presos ao tronco da jabuticabeira, não em abundância como as laranjas ou os caquis que “o” Haruo fotografou – agora já me atrevo a escrever assim. As laranjas foram registradas no chão, às centenas, enquanto os caquis, igualmente fartos, pendem das mãos de três dos nove filhos de Haruo, em pencas. Ao lado, Kô Sanada, a mãe, cúmplice do trabalho do marido na lavoura da Chácara Arara e na vida.
As duas fotos são quase ruidosas, como se se pudesse pressentir o barulho causado pelas laranjas despejadas no chão. Como se, para mostrar os caquis, as crianças tivessem por um momento parado de correr, de gritar, a fim de exibir os frutos vermelhos que pesavam em seus braços infantis.
Na foto das jabuticabas, não é a fartura que sobressai. Tampouco ela sugere, como acontece nas das laranjas e dos caquis, um ruído anterior ao clique da Rolleiflex que Haruo usava nas suas fotos de amador que se converteria num dos maiores nomes da fotografia brasileira do século XX. Dessa vez, o silêncio prepara a delicadeza do tronco bordado de frutos. Haruo não escolheu a parte do tronco mais cheia, e sim um pedaço apenas salpicado das esferas pretas e reluzentes. Sobressaem raras, como pares de brincos. Parecem mais joias que frutos. À exceção de uma trinca que se projeta na frente, as outras brotam em duplas, pérolas negras prontas para serem penduradas na orelha de uma deusa africana ou de uma tsarina japonesa.
Quando vi essa foto estampada no banner de divulgação da exposição, cheguei a pensar que o Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS, tinha adivinhado meus pensamentos. Mas não, a arte tem disso: se é valorizada pelos que sabem julgar, pelos que conhecem a técnica, não espera conhecimento para tocar os que olham de coração e olhos bem abertos. Assim, toda noite, quando saio, vejo as jabuticabas se oferecendo sob a luz, joias para noite de gala.
“Só podemos fotografar o que já existe em nós”, escrevia Paulo Mendes Campos em um de seus cadernos de notas. Com a autoridade de quem nada sabe, vejo muito de gratidão amorosa na foto que Haruo fez da mulher, Kô Sanada, nos seus últimos dias de vida. Doente, mas sem perda de dignidade, Kô se abandona na poltrona. Não segura o leque aberto, colocado em suas mãos. Faltam-lhe forças. Ele está no seu colo para substituir-lhe as mãos, em pacífico e silencioso adeus. Há uma inviolável ternura no olhar de Kô, ressonância do que vem do fotógrafo, assim como queria Paulo Mendes Campos, que, citando Valéry, afirmava que a ternura é a “tendência de se entregar em franqueza à doçura de ser fraco”. E Paulo relaciona assim o convite à ternura:
Ternura por um portal de outro século; por um pátio de clausura azul; por uma ladeira desenhada de retas que parecem tortas; pela integridade metálica de um sino; por uma pretinha, quase despida, de vermelho; por um renque de coqueiros abrindo contra o vento parênteses que não se fecham; por um aroma de maresia
* Elvia Bezerra é coordenadora de literatura do IMS.
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