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sábado, 26 de julho de 2014

A arte de ser avó - Raquel de Queiroz



Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses,um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo…
Quarenta anos, quarenta e cinco… Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações – todos dizem isso embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto – mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, àsvezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego,apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres – não são mais aqueles que você recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino.Completamente grátis – nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades,símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é ”devolvido”. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos,profundos e felizes que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico,deixado pelos arroubos juvenis. Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avó, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto…

sexta-feira, 7 de março de 2014

A ‘Mulher Mais Feia do Mundo’ vai te dar uma Lição de Vida Inesquecível

"Muito, mas muito bom mesmo. Treze minutos de reflexão e exame daquilo que é valor, daquilo que é o essencial. Enquanto uns só fazem reclamar, outros fazem viver. Ilusão é pensar que a vida é apenas o que a limitada visão alcança e, com isso, viver enganchado no superficial, na casca. Prova disso é essa pessoa que, pelas suas palavras, transforma a si mesmo em alguém de rara beleza e alto grau. Que lhe seja útil, como me foi". *Preciosidade que foi postada no Facebook pela amiga, Romilda Lorenzo Gomes-Timan

domingo, 19 de janeiro de 2014

Ingrid - Teresa Santos


E de repente Ingrid sumiu do nosso convívio.
Não a víamos mais com seu monólogos em alemão.
Caminhava sempre de cabeça baixa, com os cabelos cor de palha escorridos e que escondiam uma beleza que se desmanchava a cada dia.
Somente seus impressionantes olhos azuis lhe davam vida.
E dizer que a conheci quando a magreza não fazia parte de seu corpo.
Era uma mulher do tipo mignon. Quase gordinha.
Trabalhava como secretária executiva da presidência na Volkswagen e muitas vezes nos encontrávamos no ponto de táxi.
Ela, ao contrário de mim, estava sempre atrasada. Os motoristas do bairro adoravam levá-la porque o dia deles estava praticamente ganho com uma corrida tão longa. Quantas vezes a deixei passar na minha frente, quando só tinha um carro.
E em um estalo desapareceu. Não a via mais e nem aos sábados quando fazíamos compras no supermercado.
Soube depois que viajara para a Alemanha e que lá conheceu um alemão de origem africana.
Viveram um tempo juntos até que o romance acabou. Retornou ao Brasil e nunca mais foi a mesma.
Emagreceu, deixou os cabelos crescerem sem cuidado e começou a falar sozinha e em alemão.
Outro dia perguntei por ela a um conhecido comum.
Contou-me que tinha sido internada em uma clínica psiquiátrica. Os filhos não sabiam como proceder com ela, logo após ter quase incendiado o apartamento onde morava sozinha.
Fiquei chateada ao saber da notícia e procurava entender o que será que teria acontecido para que aquela inteligente e bela mulher surtasse daquele jeito.
Foi então que um pensamento, sempre recorrente, veio à minha mente:
- A sanidade e a loucura estão separadas por uma ínfima linha chamada razão. Uma vez rompida o desastre é inevitável.
 
 
Da série: "Olhar Urbano"
 
 
 
Teresa Santos, 62 anos, paulista. Aposentada, mas na ativa. Formada em Letras pela Universidade São Paulo. Gosta de estudar idiomas, de viajar, de ler  e de observar o mundo. Considera o ser humano a melhor personagem para seus escritos. É grata à vida  e se considera uma pessoa feliz.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

#Sentimental - Joaquim Ferreira dos Santos

Publicado por O Globo

A partir da bossa nova um inesperado mal se escondia no coração dos homens. Não era o golpe de Estado, o vento encanado ou o bicho do pé. Era a música brega

Cafonas são os beijos que não foram dados e as lágrimas derramadas pela crítica no leito de morte desses cantores outrora chamados bregas e que agora, toda semana um morto, são declarados como joias raras da melhor música brasileira.
Descansem em paz Nelson Ned, Reginaldo Rossi, Wando, Dom, Ravel, Evaldo Braga, Waldick Soriano, Lindomar Castilho e tantos outros no mesmo panteão dos que já se foram, grandes artistas marcados pela dor macambúzia de jamais conhecerem em vida o beijo refrescante do elogio impresso.
Perdoem esta espinhela caída que vira e mexe acomete a alma fúnebre nacional, uma viúva escrota sempre disposta a declarar simpatia culta hoje pelo cantor velhinho de mau gosto que morreu ontem.
Vocês eram pobres, tinham a pele oleosa, o cabelo esticado com meia de nylon e pararam de queimar as pestanas no ginásio. Queriam cantar da vida apenas aquilo que a bandida fornecia de mais sentimental, um roteiro de dor, perfídia, perfume de gardênia, mulheres que iam embora e as súplicas ajoelhadas para que voltassem. Vocês sofriam. Os bacanas não gostam disso.
Os críticos acham que cantor brega com valor é feito bandido bom, só existe depois de morto — e esperaram Nelson Ned morrer, anão coitado apedrejado em vida, para, compungidos, segurar-lhe a alça do caixão. Quando tiveram a certeza de que o corpo começava a esfriar, disseram que ia ali a versão nacional de um Frank Sinatra bonsai.
Eu nunca namorei uma garota em cadeira de rodas, como fez Fernando Mendes, eu nunca tirei mulher da zona, como perpetrou Odair José, mas eu estava lá. Vi. Desde aquele dia de 1958, quando estalaram sob as agulhas das vitrolas nacionais as primeiras bolhas do compacto de João Gilberto com “Chega de saudade”, criou-se um novo país de belas sonoridades — ao mesmo tempo surgiu a maldição de que do outro lado do ringue ficariam os párias do mau gosto. Passamos a viver num apartheid musical. Quem não cantasse baixinho estava fedido. Quem se deixasse iluminar pela luz difusa do abajur lilás era um perdedor.
O país do santo barroco baiano, sempre orgulhoso do turbante de frutas de Carmen Miranda e da cabeleira de príncipe na cabeça do mestre-sala, deu meia volta no sapato bicolor com que ia à pândega na gafieira. Pisou no freio do exagero estético. A partir da bossa nova surgia um inesperado mal que se escondia no coração dos homens. Ele devia ser evitado a todo custo, à base de enteroviofórmio, acordes dissonantes, amor, sorriso e muita flor. O novo mal brasileiro não era o golpe de Estado, o vento encanado ou o bicho do pé. Era a música brega.
Antes havia Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves, Joel e Gaúcho, Isaurinha Garcia, Custódio Mesquita, todos misturados e saudados no mesmo cordão encarnado da falta de preconceito. Diferentes, mas grandes artistas ouvidos por ricos e pobres, analfabetos e espertos. Mario Reis, o dândi do Copacabana Palace, ia até a Lapa gravar em primeira mão os sambas do malandro Sinhô. Antônio Maria enchia os cornos de uísque e mandava Nora Ney repetir “Ninguém me ama, ninguém me quer”. Alguns iam de dó de peito, outros se acompanhavam de zabumbas. A batuta de Radamés Gnatalli não perguntava nada. Regia a todos no democrático palco-estúdio da Rádio Nacional.
Não havia bem e mal, brega e chique, na MPB. Tanto fazia a comadre Sebastiana do Jackson do Pandeiro quanto a Nega Luzia do Wilson Batista ou a normalista do Nelson Gonçalves. Todas comíveis, lindas, musas cortejadas nos salões. Foram-se. Como cantava Nelson Ned, “tudo passa, tudo passará”.
Talvez por isso, neste momento em que a música popular pulsa tão broxa, todo mundo querendo se passar por cool, talvez por isso pinguem essas lágrimas da crítica pelos artistas-mortos que ela maltratou em vida.
Os tais bregas botavam os bofes para fora, como Núbia Lafayette, rasgavam os paletós no auge da súplica, como Orlando Dias, saíam declamando poemas como Silvinho. As fãs de Wando, agradecidas por terem suas vidas colocadas com tanta emoção em cena, jogavam sobre o palco o testemunho efusivo da vibração de suas calcinhas. Foi no tempo do crime passional, do coração fora do peito, do pulso sangrando, da camisola do dia tão transparentemente macia, da porta batendo para nunca mais e do chifre espetando a alma nacional.
Paulo Sérgio, Anísio Silva, Evaldo Braga, Luis Ayrão, Claudio Fontana, Altemar Dutra e Amado Batista. Nesses aplicativos modernos, onde as moças de hoje avaliam os rapazes começando pelas suas dimensões penianas, seria colocada ao lado do nome desses cantores bregas a hashtag #sentimental. Seria uma avaliação positiva. O tamanho do documento era outro


domingo, 5 de janeiro de 2014

Diferenças claras entre a sociedade holandesa e a brasileira

Publicado por Ducs Amsterdam

A sociedade holandesa tem dois pilares muito claros: liberdade de expressão e igualdade. Claro, quando a teoria entra em prática, vários problemas acontecem, e há censura, e há desigualdade, em alguma medida, mas esses ideais servem como norte na bússola social holandesa.
Um porteiro aqui na Holanda não se acha inferior a um gerente. Um instalador de cortinas tem tanto valor quanto um professor doutor. Todos trabalham, levam suas vidas, e uma profissão é tão digna quanto outra. Fora do expediente, nada impede de sentarem-se todos no mesmo bar e tomarem suas Heinekens juntos. Ninguém olha pra baixo e ninguém olha por cima. A profissão não define o valor da pessoa – trabalho honesto e duro é trabalho honesto e duro, seja cavando fossas na rua, seja digitando numa planilha em um escritório com ar condicionado. Um precisa do outro e todos dependem de todos. Claro que profissões mais especializadas pagam mais. A questão não é essa. A questão é “você ganhar mais porque tem uma profissão especializada não te torna melhor que ninguém”.
Profissões especializadas pagam mais, mas não muito mais. Igualdade social significa menor distância social: todos se encontram no meio. Não há muito baixo, mas também não há muito alto. Um lixeiro não ganha muito menos do que um analista de sistemas. O salário mínimo é de 1300 euros/mês. Um bom salário de profissão especializada, é uns 3500, 4000 euros/mês. E ganhar mais do que alguém não torna o alguém teu subalterno: o porteiro não toma ordens de você só porque você é gerente de RH. Aliás, ordens são muito mal vistas. Chegar dando ordens abreviará seu comando. Todos ali estão em um time, do qual você faz parte tanto quanto os outros (mesmo que seu trabalho dentro do time seja de tomar decisões).
Esses conceitos são basicamente inversos aos conceitos da sociedade brasileira, fundada na profunda desigualdade. Entre brasileiros que aqui vêm para trabalhar e morar é comum – há exceções -  estranharem serem olhados no nível dos olhos por todos – chefe não te olha de cima, o garçom não te olha de baixo. Quando dão ordens ou ignoram socialmente quem tem profissão menos especializadas do que a sua, ficam confusos ao encontrar de volta hostilidade em vez de subserviência. Ficam ainda mais confusos quando o chefe não dá ordens – o que fazer, agora?
Os salários pagos para profissão especializada no Brasil conseguem tranquilamente contratar ao menos uma faxineira diarista, quando não uma empregada full time. Os salários pagos à mesma profissão aqui não são suficientes pra esse luxo, e é preciso limpar o banheiro sem ajuda – e mesmo que pague (bem mais do que pagaria no Brasil a) um ajudante, ele não ficará o dia todo a te seguir limpando cada poerinha sua, servindo cafézinho. Eles vêm, dão uma ajeitada e vão-se a cuidar de suas vidas fora do trabalho, tanto quanto você. De repente, a ficha do que realmente significa igualdade cai: todos se encontram no meio, e pra quem estava no Brasil na parte de cima, encontrar-se no meio quer dizer descer de um pedestal que julgavam direito inquestionável (seja porque “estudaram mais” ou “meu pai trabalhou duro e saiu do nada” ou qualquer outra justificativa pra desigualdade).
Porém, a igualdade social holandesa tem um outro efeito que é muito atraente pra quem vem da sociedade profundamente desigual do Brasil: a relativa segurança. É inquestionável que a sociedade holandesa é menos violenta do que a brasileira. Claro que aqui há violência – pessoas são assassinadas, há roubos. Estou fazendo uma comparação, e menos violenta não quer dizer “não violenta”.
O curioso é que aqueles brasileiros que queixam-se amargamente de limpar o próprio banheiro, elogiam incansavelmente a possibilidade de andar à noite sem medo pelas ruas, sem enxergar a relação entre as duas coisas. Violência social não é fruto de pobreza. Violência social é fruto de desigualdade social. A sociedade holandesa é relativamente pacífica não porque é rica, não porque é “primeiro mundo”, não porque os holandeses tenham alguma superioridade moral, cultural ou genética sobre os brasileiros, mas porque a sociedade deles tem pouca desigualdade. Há uma relação direta entre a classe média holandesa limpar seu próprio banheiro e poder abrir um Mac Book de 1400 euros no ônibus sem medo.
Eu, pessoalmente, acho excelente os dois efeitos. Primeiro porque acredito firmemente que a profissão de alguém não têm qualquer relação com o valor pessoal. O fato de ter “estudado mais”, ter doutorado, ou gerenciar uma equipe não te torna pessoalmente melhor que ninguém, sinto muito. Não enxergo a superioridade moral de um trabalho honesto sobre outro, não importa qual seja. Por trabalho honesto não quero dizer “dentro da lei” -  não considero honesto matar, roubar, espalhar veneno, explorar ingenuidade alheia, espalhar ódio e mentira, não me importa se seja legalizado ou não. O quanto você estudou pode te dar direito a um salário maior – mas não te torna superior a quem não tenha estudado (por opção, ou por falta dela). Quem seu paí é ou foi não quer dizer nada sobre quem você é. E nada, meu amigo, nada te dá o direito de ser cuzão. Um doutor que é arrogante e desonesto tem menos valor do que qualquer garçom que trata direito as pessoas e não trapaceia ninguém. Profissão não tem relação com valor pessoal.
Não gosto mais do que qualquer um de limpar banheiro. Ninguém gosta – nem as faxineiras no Brasil, obviamente. Também não gosto de ir ao médico fazer exames. Mas é parte da vida, e um preço que pago pela saúde. Limpar o banheiro é um preço a pagar pela saúde social. E um preço que acho bastante barato, na verdade.

Excelente texto extraído do blog de Daniel Duclos, brasileiro que atualmente mora na Holanda. De uma lucidez impressionante.

Dica da minha amiga, Romilda Lorenzo Gomes-Timan