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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O congelador e os tijolos - Cora Rónai


Antigamente, as geladeiras eram enormes por fora e pequenas por dentro. Serviam para resfriar umas garrafas de água, manter a salada fresca e a manteiga no ponto, mas não eram, como hoje, bons depósitos de comida. Naquela época não existia ainda a idéia das compras do mês, e as refeições eram preparadas com o que se achasse no comércio da vizinhança: mercearia, açougue, peixaria, frutas e verduras… Perto da nossa casa, no Bairro Peixoto, havia até uma avicultura que vendia galinhas, patos e codornas vivos (eu morria de pena de todos e mal tinha coragem de passar na porta, mas isso, é claro, não impedia que adorasse o galeto assado da outra esquina).
Naquelas geladeiras desajeitadas, o congelador era um compartimento minúsculo, na parte superior, que – pelo menos na minha lembrança — vivia dando problema: a porta travava, as formas grudavam e volta e meia tinha que se desligar a traquitana inteira para descongelar. Tudo por causa do gelo que crescia de forma completamente desordenada. Valia tudo para tentar domesticá-lo, de banhos de água quente a cutucadas com objetos pontiagudos, duas técnicas de resto condenadas pelos fabricantes.
Ainda assim, aqueles congeladores gauche tinham seu encanto. Quando uma criança queria saber como era a neve, bastava abri-los, raspar com uma colher o gelo mais fresco e pronto, lá estava um punhado de neve ao alcance da mão. Alguns produziam até pequenas estalactites muito educativas.
Apesar da profusão de gelo nos lugares errados, o gelo foi um artigo de luxo durante boa parte da minha infância. A sua fabricação ficava por conta de duas formas de alumínio com grades móveis que, em tese, soltariam os cubinhos com mais facilidade, mas que, na prática, sempre emperravam. O gelo que produziam era pouco e, principalmente, muito demorado. Uma vez esvaziadas, só no dia seguinte haveria nova leva.
Sacos de gelo como os que compramos hoje ainda não existiam. Quando alguém dava festa e precisava de gelo em quantidade, mandava vir uma barra do depósito mais próximo. Ainda assim, a idéia de que gelo era algo “difícil” condicionava de tal forma o modo como o consumíamos que, mesmo diante de uma barra inteira, valia a parcimônia do dia-a-dia: naqueles tempos, “bebida com gelo” era um copo de qualquer coisa com duas insignificantes pedrinhas. Copos com mais gelo do que bebida são invenção relativamente recente.
Quando passava por um entregador levando as barras, em geral protegidas do calor por serragem, eu olhava para aquela abundância com o mesmo misto de emoção e respeito com que Amundsen olhava para o Polo Sul. Que milagre, aquele gelo todo desfilando num dia de verão! Mais atraentes do que as grandes barras, só mesmo os pedaços de gelo seco que equipavam as carrocinhas da Kibon, e que faziam fumaça quando eram postos na água.
Por falar em Kibon, nos congeladores minúsculos d’antanho cabia uma outra coisa além das duas forminhas de gelo: um tijolo de sorvete ou, como dizia a caixa, “sorvex”. O tijolo, para quem não chegou a conhecê-lo, era um retângulo de uns vinte centímetros de comprimento, que se servia num prato e do qual se cortavam fatias com uma faca. Em tese, funcionava muito bem, mas a prática podia ser complicada. É que o tijolo era embrulhado em cartão, sem isolamento térmico, e fatalmente chegava meio derretido em casa. Ia direto para o congelador — mas, como as geladeiras não eram lá aquelas maravilhas, nunca chegava a gelar de todo. O pior era quando chegava tão derretido, mas tão derretido, que escorria pelo fundo do congelador. Grande lambança!
O sabor mais comum era o napolitano, uma péssima idéia de chocolate, creme e morango. Todo mundo brigava pelo chocolate e deixava o morango de lado. As mães ficavam muito nervosas com isso. Cansei de ver tijolos desfigurados, com o chocolate e o creme cavadinhos, e o morango intacto. Alguém da Kibon deve ter visto a mesma coisa, porque algum tempo depois foi lançado o tijolo carioca, xadrezinho, que só tinha chocolate e creme.
O carioca também fez sucesso nos copinhos que, durante muito tempo, só foram oferecidos no sabor mais sem graça do mundo: creme. Os copinhos eram quadrados, de papel, e eram vendidos nos ambulantes que circulavam pela cidade. O nosso freguês ficava na praça Edmundo Bittencourt, ao lado do rinque de patinação. Ele vendia toda a linha de sorvetes, embora nem sempre tivesse tijolos, e mais um monte de coisas gostosas que a Kibon não fabrica mais, como delicados, jujubas e ki-bambas. No fim da tarde, recolhia-se ao depósito da rua Santa Clara, onde às vezes parávamos para uma casquinha antes ou depois da praia. Era deste depósito que vinham os tijolos lá de casa.
Mais tarde, quando os congeladores ficaram maiores, apareceu um produto revolucionário no planeta sorvete: a lata. A lata se conservava muito melhor do que os tijolos, e não deixava que o sorvete derretesse pelos cantos. Além disso, tinha modelos lindamente decorados, que mudavam conforme a temporada, e podia ser reaproveitada de mil maneiras. Durante muitos anos, na nossa casa, os barbantes foram guardados numa lata azul, com lápis pintados na lateral.
Como saudade não tem idade, há diversas dessas latas sendo vendidas atualmente no mercadolivre, site de leilões onde se encontra de tudo; mas delícia mesmo era trazê-las cheinhas para casa, e dar cabo do conteúdo num domingo de sol e preguiça.
(O Globo, Segundo Caderno, 2.2.2012)

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A bela e a fera - Nadia Foes


Houve um tempo que o brasileiro não gostava de ser brasileiro. Ele queria ser europeu; mais adiante quis ser americano. Algumas pessoas, naquela época, sonhavam com sobrenome europeu, mais precisamente francês. Quem não possuía nome ou sobrenome francês por conta de seus ancestrais, tratava de acrescentar, na assinatura, no início ou no meio, um nomezinho francês. Pois a professora Raymonde teve a felicidade de ter prenome francês e ainda acrescentou um sobrenome lá no final de sua assinatura, também francês. E como era professora de francês no ginásio, sentia-se mais próxima da França, embora jamais tenha colocado o seu pé em território francês. Ela adquiriu hábitos e maneiras da cultura francesa que repassou para suas duas filhas. Casou muito tarde com um funcionário público quase aposentado. Vivia modestamente na casa que foi de seus pais. Seu pai fora dono de uma pequena venda e morava nos fundos, onde Raymonde nasceu solteirona, pois foi morar com seus pais. Com o falecimento deles ela continuou na casa. Seu único luxo com a edificação era uma pintura a cal, uma caiação mesmo, no final do ano, normalmente perto do Natal. A casa era pintada de branco, com as portas e janelas azuis. Segundo ela a casa era estilo colonial, porém o mobiliário era da época de cinqüenta – tudo pé palito. Era um horror. Foi nessa casa que nasceram suas duas filhas, meninas lindas. Raymonde dava aulas particulares para engordar o porquinho. Não recebia visitas com a desculpa que estava redecorando a casa, porém freqüentava muito. Não perdia um casamento, uma festa, um aniversário, um baile da vida. Suas filhas eram educadas e encaminhadas para fazer casamentos brilhantes, porém o que existia na época, em termos de bom partido, eram os funcionários do Banco do Brasil. Foi uma leva de jovens que chegou na cidade para trabalhar no banco e foram recebidos de braços, portas e janelas abertas. O que as mães da época não faziam para casar suas filhas com um desses partidões! E a maioria das meninas da época acabou casando com os bonitões. Raymonde mantinha a pose e quando sua filha mais velha se casou, e como quase ninguém na cidade possuía carrão, a moça foi a pé para a igreja e lançou a moda de servir bolo no salão paroquial, só que a moda não vingou. Sua filha tinha estilo. Na época em que Brigite Bardot lançou Búzios no calendário da moda e usava vestidinhos esvoaçantes xadrezinhos, a filha de Raymonde copiou todos os modelos. Explica-se, era econômico. A segunda filha de Raymonde despontou mais cedo na vida social. Ela era linda, charmosa e seu lançamento não foi triunfal como o de sua irmã e quando debutou foi vestida de rainha. O vestido era de veludo branco com uma imensa gola de lontra branca. A debutante foi carregada para o baile em plataforma de madeira, com quatro rodas de borracha, puxada por moleques vestidos como os moleques de Debret. Esse acontecimento ocorreu na década de cinqüenta. Todas as janelas das casas se abriram para ver a debutante passar. Os moleques de Debret conduziram a debutante e ajudaram-na subir as escadas devido ao peso do vestido. E após a missão cumprida foram brincar com a plataforma no mercado até as quatro horas da madrugada que foi a hora marcada para a saída do baile. Ficar até o final, nem pensar. Na opinião de Raymonde não era chique. Na hora marcada para saída do baile os moleques estavam a postos. Tudo isso só para a debutante não sujar o vestido nas calçadas. Quando a segunda filha despontou já não se faziam bailes de debutantes anual. Os bailes eram de cinco em cinco anos e a média de idade das debutantes eram entre 13 e 17 anos. O espaço de espera era longo demais. A bela apareceu pela primeira vez no baile anual da padroeira do Estado. Era uma festa concorrida, tinha novena, tinha quermesse e o ponto alto era o baile. Era muito chique. E foi nesse baile que a segunda filha de Raymonde apareceu e arrasou. Menina inteligente, também fazia gênero, era estilosa. Usava todos os modelitos de famosa atriz juvenil da época. Tudo o que a bonequinha de luxo usava ela copiava. Na época, toda mocinha possuía sua estola de pele comprada na peleteria Michel que era famosa. Umas usavam caldinha de vison, outras lontras. A filha de Raymonde usava uma de pluminha. Raymonde levou meses comprando tirinhas de arminho em metro que se usava para guarnecer roupas de anjo em procissão e costurou todas as tiras. Foi um trabalho e tanto. E fazia efeito, porém próxima das outras, era um desastre. Mas a menina era inteligente e gostava de brincar soprando as penugens que grudava no laquê, nos vestidos, nas roupas das amigas. Mas o fato dela soprar a penugem, aquele gesto ela fazia com tanta graciosidade que todos acabavam achando graça. Sua vida social foi efêmera, logo começou a namorar um jovem de origem libanesa, muito rico. Sua família era do ramo de hotelaria. Dizem que o casamento foi suntuoso e que a noiva estava linda, magnífica, porém, como foi patrocínio da família do noivo, a festa, a cerimônia, o vestido da noiva, os amigos da família da noiva ficaram de fora. Só compareceu a colônia libanesa e, por muito favor, o pai, a mãe, a irmã da noiva e o marido. E aí foi o ponto final, ela casou aos dezessete anos; aos dezoito já era mãe e pariu cinco filhos durante seis anos. Aos vinte e três parecia uma senhora de meia idade. Aos quarenta ela estava morta. Deixou cinco filhos e um viúvo inconsolável por não ter mais o saco de pancadas na mão. Segundo as más línguas, dizem que ele a espancava e depois estuprava. Ela morreu de melancolia e o mais espantoso é que ninguém fez nada. Ela nunca mais foi vista desde que casou, porém o marido sempre comparecia para ver os amigos e para representar as famílias nas festas, sempre sozinho. E pensar que esse foi o casamento dos sonhos da professora Raymonde.

Restaurandora de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura, cinema, e a paixão de escrever.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A maior prevenção contra a AIDS é o conhecimento, por Manuel Santos

Foi através dessa manchete que fiquei curioso e pensativo, quanto a tudo que nos cercava, em termos de relacionamento humano...
Era o ano de 1984 e o mundo estava apavorado diante do famoso “Câncer Gay”, era assim que a AIDS começou a ser chamada. Há, ate quem afirme, que o vírus da AIDS teria sido criado em laboratórios Russos e americanos, para se combater o crescimento da homossexualidade no mundo.
Nessa época eu trabalhava em uma empresa de impressos de segurança no Caju, antiga “Thomas De La Rue”.Um amigo ficou sabendo de um congresso, que seria realizado no auditório do jornal O DIA. O primeiro debate com participação do público, médicos e psicanalistas. No dia combinado saímos eu e o Joel Vieira (ex candidato a vereador por Niterói nas eleições 2008.) em direção a Rua Riachuelo, onde ficava a sede, e o auditório. Durante o caminho a pé do centro do Rio ate o auditório, foi que nos demos conta do tipo de público que deveria comparecer em massa... O público Gay, não deu outra, já na entrada do teatro era visível as manifestações nada contidas das “meninas” que la compareceram, e já formavam um grande “rebuliço” na entrada.
Realmente temos que admitir que o público gay é um povo alegre e descontraído. Eu e o Joel começamos a nos divertir muito com as manifestações feita pelo publico GLSA, chegamos a comentar o que seria de nós se os amigos de trabalho soubessem que nós estávamos presentes a essa manifestação alegre, mas ao mesmo tempo, Importante demais para voltar atrás. Ficamos sentados na segunda fileira do teatro bem em frente à bancada dos debatedores. Ao meu lado sentou o Joel, tímido e um pouco envergonhado por sermos a minoria etérea na platéia. Durante o debate, muito se falou sobre os procedimentos de prevenção e formas seguras de fazer sexo. Já tinha decorrido um bom tempo quando resolveram dar início as perguntas e duvidas, não sei por que, se criou um silencio mórbido entre os debatedores e a participação da platéia, e eu desafortunadamente levantei o braço e fiz a primeira pergunta. Nesse exato momento vi certa movimentação de fotógrafos todos apontando suas máquinas na minha direção, eu fiquei vermelho de vergonha, pela exposição. Como se não bastasse naquele exato momento ser o centro das atenções; uma senhora que estava sentada a minha frente teve um mal súbito e desmaiou. Joel mais que depressa se levantou e juntou sua cabeça a minha para poder melhor observar o ocorrido, flashes, correria, médicos, macas, enfim aquilo que é comum nesse momento, afinal estava ali vários médicos, participando do debate.
Saímos do congresso, com uma idéia bem formada sobre a AIDS, e com uma informação superior a muitos médicos que da “nova” doença não sabiam nada... Combinamos em não comentar nada na empresa, pois sabíamos que nossos companheiros de trabalho, não iam entender muito bem a nossa participação, sabe com é, mundo machista etc. e tal!
No dia seguinte apenas falamos com os mais chegados ... Na empresa era proibido almoçar fora, por questão de segurança pois a mesma produzia selos, cédulas, cheques e notas promissórias, motivo pelo qual nos éramos então proibidos de sair durante o almoço. No refeitório eram colocados vários jornais para que os funcionários pudessem ir lendo e se distraído ate completar seu horário de almoço, por sermos muitos, e o refeitório pequeno, existiam vários horários de almoço, o nosso era o último horário, pois também chegávamos mais tarde. Ao nos dirigirmos para o refeitório, íamos ao encontro com os que de la voltavam, por terem acabado seu tempo, e foi ai que tivemos uma enorme surpresa:
-São eles, são eles eu não falei!Diziam os funcionários...
_Caramba, são eles mesmos!!! E ao passar por nós, um dos funcionários nos deu um exemplar do jornal que tina na primeira página a seguinte manchete:
Gay’s vão formar um partido contra a discriminação e a AIDS, que se chamará TRIANGULO COR DE ROSA.
Advinha qual era a foto que estava La? Sim senhor, a minha e do Joel de cabeça juntinhas olhando para o chão...
A foto foi tirada na hora que a tal senhora desmaiou e nesse exato momento o Joel se levantou para poder melhor observar o ocorrido, pronto foi o suficiente.
O pior ainda estava por vir, depois de centenas de telefonemas de amigos me gozando, com a história, ainda tive que ouvir da minha sogra o seguinte:
Eu não te falei... Eu nunca confiei muito nele!!!
 Manuel Santos, português, carioca por opção, aposentado em publicidade, descobriu na música, a felicidade.

Rio de Janeiro, cidade maravilhosa

The City of Samba from Jarbas Agnelli on Vimeo.

O rombo da educação - Gustavo Ioschpe


Gustavo Ioschpe

O rombo da educação é o cabide de empregos de 46 bilhões de reais
Há uns dois meses, quis descobrir o total de funcionários do setor da educação no Brasil. O número de professores é bem conhecido dos pesquisadores, pois está na casa dos 2 milhões há alguns anos, mas não sabia quantos seriam os funcionários do setor que não são docentes.
Tenho um verdadeiro arsenal de dados estatísticos sobre a educação brasileira e internacional. Procurei em todos, inclusive em algumas sinopses estatísticas da educação básica, que são arquivos com mais de 200 planilhas, que informam até quantas turmas do ensino fundamental com menos de 4 horas/aula por dia há no Acre. Mas o número de funcionários não aparece em nem um único documento. Não está disponível para consulta em lugar algum. Fiz então uma consulta direta ao Inep, órgão do MEC responsável por avaliações e estatísticas. A resposta solícita veio no mesmo dia: incluindo professores, são mais de 5 milhões de funcionários na área da educação no Brasil, pouco mais de 4 milhões deles na rede pública.
Fiquei embasbacado com esse dado. Não apenas pelo gigantismo do número total – seus 5 milhões de membros fazem com que essa seja a quarta maior categoria profissional do Brasil, atrás apenas dos agricultores, vendedores e domésticas –, mas especialmente pelo fato de termos 3 milhões de funcionários longe da sala de aula, um número 50% maior do que o de professores.
Imaginei que essa relação entre funcionários e professores seria menor em países com sistemas de educação mais eficientes. Dito e feito, até em um nível maior do que eu imaginara. Segundo os dados mais recentes do Education at a Glance, levantamento feito pela OCDE (disponível em twitter.com/gioschpe), a relação entre funcionários e professores em seus países-membros é de 0,43. No Brasil, falando apenas do setor público, essa relação é de 1,48. Ou seja, enquanto lá há um funcionário para cada dois professores, aqui a relação é quase três vezes e meia maior. Isso significa que, se o Brasil tivesse a mesma relação professor/funcionário dos países desenvolvidos, haveria 706000 funcionários públicos no setor, em vez dos 2,4 milhões que temos. Como é difícil imaginar que precisemos de mais funcionários que as bem-sucedidas escolas dos países desenvolvidos, isso faz com que tenhamos 1,7 milhão de pessoas excedentes no sistema educacional, recebendo todo mês salários que vêm do nosso bolso. Se presumirmos que os funcionários recebem o mesmo salário médio que os professores (infelizmente não há dados oficiais a respeito do país todo, mas a conversa com alguns secretários da Educação me sugere que essa é uma hipótese válida), isso significa um desperdício de inacreditáveis 46 bilhões de reais, ou 1,3% do PIB, todo ano, o que certamente é mais do que todos os escândalos de corrupção da última década somados. É simples chegar a esse número: basta saber quanto o Brasil investe em educação por ano e que porcentagem disso é investida em folha salarial. Ambos os dados estão disponíveis no Education at a Glance, e o cálculo completo está disponível no meu Twitter.
A importância desse dado, porém, vai muito além da simples montanha de recursos que são desperdiçados. Ele ajuda a explicar algo ainda mais importante para o futuro do Brasil: a razão pela qual nossa educação vai tão mal.
O primeiro fator impactado por essa gastança é o salário do professor. Esse dado explica como o Brasil pode, ao mesmo tempo, investir tanto em educação e ter professores tão insatisfeitos com o seu rendimento. (A propósito, cruzando os dados da OCDE com o PIB brasileiro, o salário médio mensal do professor na rede pública é de 2262 reais. Cuidado com os discursos do pessoal que fala do “salário de fome”.) Se se demitissem os funcionários excedentes e o salário deles fosse transferido aos professores, a remuneração destes aumentaria 73%, para 3906 reais mensais.
O segundo impacto é o poder político desse grupo. Se já seria difícil a algum político ir contra a vontade dos 2 milhões de professores, o que dizer então de um grupo que, na verdade, tem 5 milhões de membros, a grande maioria sindicalizada e politizada? Não é de espantar que os políticos dispostos a encarar a briga com a categoria tenham sido invariavelmente derrotados. Não é de espantar, também, que a categoria consiga fazer greves tão volumosas e barulhentas.
A terceira realidade claramente descortinada por esses dados é a utilização política do setor de educação. Não é possível chegar a esse nível sem que haja um esforço deliberado de contratações desnecessárias. Contratações que só ocorrem porque os profissionais da educação são frequentemente utilizados como instrumento político de seus padrinhos. Muitos viram simples massa de manobra e fonte de votos, outros – especialmente nos cargos de direção e supervisão regional – acabam se tornando verdadeiros cabos eleitorais de lideranças regionais.
A quarta conclusão é ainda mais séria. Ela diz respeito à relação entre gastos com educação e a qualidade do ensino ministrado. A maioria dos estudos sobre o tema demonstra não haver relação significativa entre o volume de recursos gastos em educação e a qualidade do ensino. No Brasil, onde a maior parte do gasto é canalizada para aumentar o número de profissionais na rede e dar melhor remuneração àqueles que já estão nela, não é de surpreender que o constante aumento de gastos no setor nos últimos dez anos tenha sido acompanhado de estagnação. Os resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) foram piores em 2007, último ano disponível, do que em 1997. Se já é difícil promover melhorias nos países em que o recurso é bem aplicado, imagine no Brasil, onde o dinheiro financia um gigantesco cabide de empregos. O mais desalentador é que, em meio a tão contundentes evidências de que o aumento dos investimentos não tem trazido resultados na melhoria do aprendizado dos alunos, testemunhamos a todo momento a patética pregação para aumentar o valor investido em educação dos atuais 5% do PIB para 7% (o que já seria um fenomenal aumento de 40%, ou 73 bilhões de reais por ano, em valores de 2010). Não ocorre a ninguém que custa pouco o que realmente melhora o ensino: reformular os cursos universitários de formação de professores, profissionalizar a gestão das escolas, adotar um currículo nacional, permitir a criação de novas modalidades no ensino médio, melhorar o material didático e cobrar a utilização de práticas de sala de aula comprovadamente eficazes. É preciso disposição para encarar as tarefas que exigem trabalho e coragem para enfrentar as resistências corporativas. Mas sobre isso os bravos gastadores de plantão não querem nem ouvir falar. Não dá voto. Não sei exatamente como se sentiram os passageiros do Titanic que ouviam a orquestra a tocar enquanto o navio fazia água, mas suspeito que a minha estupefação e desalento sejam parecidos com o sentimento deles. Com a agravante de que, cada vez que compro algo ou pago impostos, estou financiando o iceberg.
Fonte: revista “VEJA”
Gustavo Ioschpe (Porto Alegre, 1977) é um economista com duas graduações (em Ciência política e Administração estratégica) pela Wharton School, na Universidade da Pensilvânia, e mestrado em Economia internacional e Desenvolvimento econômico, pela Universidade Yale, nos Estados Unidos da América.
Ouça também, o comentário de Arnaldo Jabor, sobre o assunto:
http://cbn.globoradio.globo.com/comentaristas/arnaldo-jabor/ARNALDO-JABOR.htm
 

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Viagra a 2 real - Lula Vieira

A empresa onde eu trabalho implantou um sistema quase infalível de impedir que os funcionários recebam e-mails indesejados. É um antispam de última geração capaz de detectar até a intenção de quem remete. O grande problema é que ele funciona. Estou sem receber as bobagens que atulhavam minha caixa postal com as ofertas mais mirabolantes e os golpes mais sem vergonha. Eu adorava receber a informação que ganhei um carro porque fui o milionésimo freguês que comprou num supermercado, que um parente meu de Portugal morreu e me deixou uma fortuna ou que alguém tinha me fotografado na última festinha íntima de que participei.

De certa forma era uma espécie de refresco aos e-mails furibundos que alguns colegas escrevem. Como na música de Cícero Nunes e Aldo Cabral, quando o carteiro (eletrônico) chegava eu meditava e dizia “será de alegria, será de tristeza?”. Porque, como diz a dupla de compositores: “quanta verdade tristonha e mentira risonha uma carta nos traz”. Agora não tem mais disso. Não recebo mais ofertas de Viagras nem de maquininhas de aumentar o pênis, pobre de mim.


No entanto, sou obrigado a deletar por conta própria as mensagens dos burocratas de plantão que, com as devidas cópias para os patrões, bancam o Gervásio, personagem do José Simão: “ultimamente estamos usando uma quantidade descabida de papel higiênico, sem que tenhamos percebido piora na qualidade da comida do refeitório. Por este motivo estamos implantando um sistema de controle. Quantidades maiores do que o padrão só com autorização da signatária, acompanhado do respectivo laudo do departamento médico”.


O engraçado é que toda a mensagem restritiva é acompanhada de uma declaração de poder: “devido às medidas de contenção, estamos restringindo a utilização das copiadoras. Em casos excepcionais o signatário poderá...”. Prefiro mil vezes cobranças do Imposto de Renda, links para filmes pornográficos com a Sabrina Sato, avisos de protesto algumas vezes tão verossímeis que eu quase abri o anexo (onde estava o cavalo de Troia) ou cedi uma senha de banco. Quase abri, é verdade. Mas, de qualquer forma, quase.


Uma vez recebi um e-mail do Otávio Florisbal, diretor geral da Globo, me convidando para ser uma das pessoas que testaria um novo sistema de televisão, em desenvolvimento pelas principais redes do mundo, que permitiria a utilização das diversas mídias num alcance jamais imaginado. Seriam pouco mais de 80 pessoas no Brasil que – sob a mais rigorosa promessa de sigilo – receberiam todo aparelhamento em casa com direito a um tablet onde eu poderia concentrar tudo que utilizo para me conectar com o universo. Bastaria que eu desse algumas informações no formulário anexado.


O babaca aqui já estava respondendo ao terceiro quesito do tal questionário quando veio a luz. Porra! Tenho saudades dos falsos artigos de correspondentes estrangeiros sobre o Brasil e até mesmo de algumas crônicas de certos jornalistas brasileiros que eu intuí serem fictícias só porque eram muito melhores do que a média da produção dos caras. Agora não tenho mais acesso a nada disso. Se não for de empresa séria, de gente conhecida, com assuntos de relevância, a porcaria do antispam desvia. Qual é a graça de viver num mundo sem as promessas de vida melhor das propagandas, sem o risco de um vírus (virtual, é claro), sem bobagens e sem maledicências? Meus spams, por favor! Quero-os de volta! 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

"No Frigir dos Ovos" - Guaraci Neves

Alguém sabe me explicar, num português claro e direto, sem figuras de linguagem, o que quer dizer a expressão "no frigir dos ovos"

Quando comecei, pensava que escrever sobre comida seria sopa no mel, mamão com açúcar. Só que depois de um certo tempo dá crepe, você percebe que comeu gato por lebre e acaba ficando com uma batata quente nas mãos. Como rapadura é doce mas não é mole, nem sempre você tem idéias e pra descascar esse abacaxi só metendo a mão na massa.
E não adianta chorar as pitangas ou, simplesmente, mandar tudo às favas.
 
Já que é pelo estômago que se conquista o leitor, o negócio é ir comendo o mingau pelas beiradas, cozinhando em banho-maria, porque é de grão em grão que a galinha enche o papo.
Contudo é preciso tomar cuidado para não azedar, passar do ponto, encher linguiça demais. Além disso, deve-se ter consciência de que é necessário comer o pão que o diabo amassou para vender o seu peixe. Afinal não se faz uma boa omelete sem antes quebrar os ovos.
 
Há quem pense que escrever é como tirar doce da boca de criança e vai com muita sede ao pote. Mas como o apressado come cru, essa gente acaba falando muita abobrinha, são escritores de meia tigela, trocam alhos por bugalhos e confundem Carolina de Sá Leitão com caçarolinha de assar leitão.
 
Há também aqueles que são arroz de festa, com a faca e o queijo nas mãos, eles se perdem em devaneios (piram na batatinha, viajam na maionese... etc.). Achando que beleza não põe mesa, pisam no tomate, enfiam o pé na jaca, e no fim quem paga o pato é o leitor que sai com cara de quem comeu e não gostou.
 
O importante é não cuspir no prato em que se come, pois quem lê não é tudo farinha do mesmo saco. Diversificar é a melhor receita para engrossar o caldo e oferecer um texto de se comer com os olhos, literalmente.
 
Por outro lado se você tiver os olhos maiores que a barriga o negócio desanda e vira um verdadeiro angu de caroço. Aí, não adianta chorar sobre o leite derramado porque ninguém vai colocar uma azeitona na sua empadinha, não. O pepino é só seu, e o máximo que você vai ganhar é uma banana, afinal pimenta nos olhos dos outros é refresco...
 
A carne é fraca, eu sei. Às vezes dá vontade de largar tudo e ir plantar batatas. Mas quem não arrisca não petisca, e depois quando se junta a fome com a vontade de comer as coisas mudam da água pro vinho.
 
Se embananar, de vez em quando, é normal, o importante é não desistir mesmo quando o caldo entornar. Puxe a brasa pra sua sardinha, que no frigir dos ovos a conversa chega na cozinha e fica de se comer rezando. Daí, com água na boca, é só saborear, porque o que não mata engorda.
Entendeu o que significa “no frigir dos ovos”?

Autor do texto: Guaraci Neves

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Você sabe quem foi FRED FIGNER ?


FRED FIGNER
 

OS GRAMOFONES 
Frederico Figner nasceu em dezembro de 1866 em Milewko, na então Tcheco-Eslováquia.
Ainda muito jovem e buscando ampliar seus horizontes migrou para os Estados Unidos,
chegando ao país no momento em que Thomas Edison estava lançando um aparelho que
registrava e reproduzia sons por intermédio de cilindros giratórios. 
Fascinado pela novidade, adquiriu um desses equipamentos e vários rolos de gravação,
embarcando com sua preciosa carga em um navio rumo a Belém do Pará,
onde chegou em 1891 sem conhecer uma única palavra do Português.
Naquela cidade começou a exibir a novidade para o público, que pagava para registrar e escutar a própria voz.
 
O sucesso foi imediato e, de Belém, Fred se dirigiu para outras praças, sempre com o gravador a tiracolo.
Passou por Manaus, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife e Salvador antes de chegar ao Rio de Janeiro,
no ano seguinte, já falando e entendendo um pouquinho do nosso idioma e com um razoável pé de meia.
Na Cidade Maravilhosa, Figner abriu sua primeira loja, a Casa Edison, em um sobrado da Rua Uruguaiana,
onde importava e comercializava esses primeiros fonógrafos.



Comercial da Casa Edison da Rua Uruguaiana
 

CASA EDISON
 
Por essa mesma época o cientista judeu Emile Berliner tinha acabado de lançar nos
Estados Unidos um equipamento de gravação que utilizava discos revestidos com cera,
com qualidade sonora superior ao do aparelho de Thomas Edison.
Fred Figner percebeu de imediato o potencial da nova invenção e transferiu seu estabelecimento
de um sobrado da Rua Uruguaiana para uma loja térrea na tradicional Rua do Ouvidor,
onde abriu o primeiro estúdio de gravação e varejo de discos do Brasil, em 1900.


Casa Edison da Rua do Ouvidor
 
OS PRIMEIROS DISCOS

Os discos fabricados por Figner nessa fase inicial utilizavam cera de carnaúba,
eram gravados em apenas uma das faces e tocados em vitrolas movidas a manivela.
Apesar das limitações técnicas, essa iniciativa representou uma verdadeira revolução
para a música popular brasileira, que engatinhava, pois até então os artistas só podiam se apresentar ao vivo
ou comercializar suas criações por intermédio de partituras impressas.
O primeiro disco brasileiro foi gravado na Casa Edison pelo cantor Manuel Pedro dos Santos,
o Bahiano,em 1902.  Era o lundu “Isto é Bom”, de autoria do seu conterrâneo Xisto da Bahia.
A partir daí mais e mais artistas começaram a gravar suas composições em discos que eram distribuídos
pela Casa Edison do Rio e também pela filial que Figner havia aberto em São Paulo.
A procura pelos discos cresceu tanto que em 1913 Fred decidiu instalar uma indústria fonográfica
de grande porte na Av. 28 de Setembro, Vila Isabel, dando origem ao consagrado selo Odeon.



Discos Odeon

A MANSÃO FIGNER
Fred Figner era um homem à frente do seu tempo e para coroar o sucesso nos negócios
decidiu erguer uma residência que espelhasse seu perfil empreendedor. 
A hoje conhecida Mansão Figner, na Rua Marquês de Abrantes 99, no Flamengo,
abriga o Centro Cultural Arte-Sesc e o restaurante Bistrô do Senac.
É considerada um exemplo arquitetônico raro de “casa burguesa do início do século 20”.
Fred Figner utilizou-a como hospital, em 1918, durante a pandemia conhecida como Gripe Espanhola.
Apesar dele próprio estar acometido pela enfermidade, atuou como um prestativo auxiliar de enfermagem, transformando seu palacete em uma improvisada enfermaria de campanha que chegou a abrigar
quatorze pacientes em seu interior.



Mansão Figner Hoje

RETIRO DOS ARTISTAS
 
Fred era um homem generoso e solidário.
Pela própria natureza do trabalho nas suas duas gravadoras havia se tornado amigo
de muitos músicos e cantores de sucesso.
Em uma época que antecedeu à criação da Previdência, ficou consternado com a situação de penúria
que alguns desses artistas tinham de enfrentar ao chegar à velhice.
Sensibilizado com esse verdadeiro drama social, não titubeou e decidiu doar o terreno, em Jacarepaguá,
para a construção da modelar instituição Retiro dos Artistas, que funciona até os dias de hoje.


Retiro dos Artistas em Jacarepaguá

                                               

 
O FINAL 

Em 19 de janeiro de 1947, quando faleceu, aos 81 anos de idade, ao se abrir seu testamento,
verificou-se que Fred Figner havia destinado parte substancial dos seus bens às obras sociais de Chico Xavier.
O jornal carioca A Noite Ilustrada publicou editorial em que o judeu Frederico Figner foi honrado,
post-mortem, com o merecido título de:
“o mais brasileiro de todos os estrangeiros”.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A linguagem do poder‏, Affonso Romano de Sant'Anna

O poema “A implosão da mentira” nem é mais meu. Já foi usado em tribunais, processos, sermões, comícios, aulas, antologias, pôsteres, internet etc. Transcrito recentemente em jornais, foi ligado ao fato de que o atual governo mente e logo desmente, e assim vai fazendo o seu discurso. Isto remete para uma questão mais ampla: as características do discurso político. Cada profissão produz um tipo de discurso. Dizia aquela velha raposa mineira – Magalhães Pinto: política é como a nuvem, está sempre mudando. E, evidentemente, o discurso vai mudando como a nuvem.

Mas tem uma coisa que não muda tanto quanto as nuvens: a linguagem do poder. Outro dia ouvi o ministro da Justiça, que é um democrata, falar sobre a greve dos policiais na Bahia. O discurso era semelhante ao dos ministros da Justiça do regime militar: falava de ordem, hierarquia e que anistia não é para criminoso. A fala da presidenta sobre o assunto não foi diferente – embora, entende-se, diametralmente oposta à fala de uma guerrilheira. Uma nova ministra que assumiu nesses dias frisou que, no poder, sua opinião pessoal não conta. Agora descobriram uma declaração antiga do hoje governador da Bahia, Jaques Wagner, incitando a greve de policiais. Já Lula é um mestre em moldar discursos.

Repito: o poder tem um discurso próprio. Ou seja, tem sua sintaxe, tem sua semântica, em síntese: tem sua lógica discursiva. O poder é um “lugar” determinado e esse “lugar” é que gera seu discurso. E isso não é uma invenção do PT ou do Brasil. Em toda parte é assim. Vejam o filme Tudo pelo poder, com George Clooney: o candidato democrata vai mudando seu discurso de acordo com sua assessoria e de acordo com os votos que precisa conseguir. Sua opinião pessoal é irrelevante. Pode dizer o contrário do que pensa, pois o que interessa é o poder. O próprio Obama está tendo que ajeitar seu discurso às circunstâncias eleitorais.

Dizem alguns que o poder é trágico. O antigo ministro da Justiça Milton Campos dizia que hoje o poder é triste; e o general Geisel, que parecia todo-poderoso, entristecido, reconheceu o mesmo numa entrevista dada lá no Japão. Há quem diga que o poder é (necessariamente) cínico. O fato é que a primeira coisa que quem chega ao poder descobre é que o poder não pode. Até os ditadores têm que negociar.

Aquele poema – “A implosão da mentira”– foi publicado na ditadura do general Figueiredo. E hoje (infelizmente) continua atual. O poder, ontem ou hoje, tem uma estrutura e uma linguagem próprias. O poder ou assume o poder ou cai do poder. Poder não é para principiantes. Boas intenções só não funcionam. Poder é uma técnica de persuasão, que o digam tanto os líderes democratas que admiramos quanto os ditadores.

O esforço de persuasão pela linguagem está praticamente em todas as profissões, do sacerdote ao jornalista. Está (veladamente) até na crítica de arte. No livro O enigma vazio mostrei os sofismas da estética contemporânea. O sofista é treinado para provar discursivamente qualquer coisa.

O escritor, neste sentido, é um privilegiado. Usa a linguagem para revelar, não para esconder. Isto tem suas consequências. Volta e meia um escritor é punido por isto.

Quando, há uns 20 anos, eu estava no “poder”(num modesto segundo escalão) um ministro queria me forçar a nomear uma pessoa, pois era uma ordem que vinha de Brasília. Disse-lhe que queria ver essa ordem por escrito. Ele disse: “Em Brasília ninguém escreve o que diz”. Respondi: “Então, estamos num impasse, pois na minha profissão de escritor escrevo e assino o que penso”.

E a nomeação não saiu. E eu continuo escrevendo exatamente o que penso.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O voo da águia, Affonso Romano de Sant'Anna


Já que estamos nesse clima de recomeçar, com a alma limpa para novas coisas, vou iniciar transcrevendo algo que recebi. Havia pensado em outra crônica, coisa tipo "propostas para um novo milênio", como o fez Ítalo Calvino. Mas à$ vezes um texto parabólico, elíptico, pode nos dizer mais que outros pretensamente objetivos. Ei-lo:

"A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.

Nessa idade, suas unhas estão compridas e flexíveis. Não conseguem mais agarrar as presas das quais se alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.

Nesse momento crucial de sua vida a águia tem duas alternativas: não fazer nada e morrer, ou enfrentar um dolorido processo de renovação que se estenderá por 150 dias.

A nossa águia decidiu enfrentar o desafio. Ela voa para o alto de uma montanha e recolhe-se em um ninho próximo a um paredão, onde não precisará voar. Aí, ela começa a bater com o bico na rocha até conseguir arrancá-lo. Depois, a águia espera nascer um novo bico, com o qual vai arrancar as velhas unhas. Quando as novas unhas começarem a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. Só após cinco meses ela pode sair para o vôo de renovação e viver mais 30 anos."

Esse texto foi mandado como um cartão de fim de ano pela Rose Saldiva, da Saldiva Propaganda. Tem mais um parágrafo explicitando, comentando essa parábola e o titulo geral é "Renovação".

Achei que você ia gostar de tomar conhecimento disto, sobretudo quando janeiro nos inunda com sua luz.

Este texto vale mais que mil ilustrações.

Sei como é difícil uma nova ou surpreendente idéia para cartão de fim de ano. Mas esse, além de bater fortemente em nosso imaginário, dispara em nós uma série de correlações e desdobramentos.

A: abertura é seca e forte. Não há uma palavra sobrando. Parece as batidas do destino na Quinta Sinfonia de Beethoven. Releiam. "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.” ·
Já li em algum lugar que Jung dizia que, em torno dos 40, alguma coisa subterrânea começa a ocorrer com a gente e os seres humanos sentem que estão no auge de sua força criativa. É quando podem (ou não) entrar em contato com forças profundas de sua personalidade.

Já ouvi de especialistas em administração de empresas que tem uma hora em que elas começam a crescer e seus dirigentes têm que tomar uma decisão — ou fazem com que cresçam de vez assumindo mais pesados desafios ou, então, fecham, porque ficar estagnado é apenas adiar a morte.

Já mencionei em outras crônicas o personagem Jean Barois (de Roger Martin du Gard) que fez um testamento aos 40 anos, quando achava que estava no auge de sua potência intelectual, temendo que na velhice, carcomido e alquebrado, fizesse outro testamento que negasse tudo aquilo em que acreditava quando jovem. Com efeito, envelhecendo, fez realmente outro testamento que desautorizava e desmentia o anterior. É que sua perspectiva na trajetória da vida mudara, como muda a de um viajante ou a do observador de um fenômeno.

O ano está começando.

Mais grave ainda: um século está se iniciando.

Gravíssimo: mais que um ano, mais que um século, um novo milênio está se inaugurando.

Três vezes Sísifo: o ano, o século, o milênio.

Sísifo — aquele que foi condenado a rolar uma pedra montanha acima, sabendo que quando estivesse quase chegando no topo — cataprum!... a pedra despencaria e ele teria que empurrá-la, de novo, lá para o alto.

Pois bem: "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40 anos, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão. Nesta idade suas unhas estão compridas. Não conseguem mais agarrar as presas das quais alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.” ·

Nossa sociedade pensou ter inventado uma maneira de resolver, nos seres humanos, o drama da águia: a cirurgia plástica. Silicone aqui e acolá, repuxar a pele acolá e aqui, pintar e implantar cabelos. Isto feito, a águia sai flanando pelos salões, praias, telas, ruas, escritórios e passarelas.

Mas aquela outra águia prefere uma solução que veio de dentro. Talvez mais dolorosa. Recolher-se a um paredão, destruir o velho e inútil bico, esperar que outro surja e com ele arrancar as penas, num rito de reiniciação de 150 dias.

Então a águia, digamos, acabou de descasar.

(Tem que redimensionar seu corpo e seus desejos, desmontar casa e sentimentos, realocar objetos e sensações, reassumir filhos.)

Então a águia, digamos, acabou de perder o emprego.

(Tem que descobrir outro trajeto diário, outras aptidões, enfrentar a humilhação.)

Então, a águia,digamos, acabou de mudar de país.

(A crise ou o amor levou-a a outras paragens, tem que reaprender a linguagem de tudo e reinventar sua imagem em outro espelho.)

Então, a águia, digamos, acabou de perder alguém querido.

(É como se uma parte do corpo lhe tivessem sido arrancada, sente que não poderá mais voar como antes, que o azul lhe é inútil.)

Então, a águia, digamos, está numa nova situação em que está sendo desafiada a mostrar sua competência.

(Tem medo do fracasso, acha que não terá garras nem asas para voar mais alto.)

Então, a águia, digamos, andou olhando sua pele, sua resistência física, certos achaques de velhice.

Pois bem. Há que jogar fora o bico velho, arrancar as velhas penas, e recomeçar.

Época de metamorfose.

Os estudiosos da metamorfose dizem que não apenas larvas se transformam em borboletas. Para nosso espanto as próprias pedras passam também por silenciosas metamorfoses.

Enfim, parece que estamos condenados à metamorfose. Morrer várias vezes e várias vezes renascer. Até que, enfim, cheguemos à metamorfose final, onde o que era sonho e carne se converte em pó.

Mas que fique sempre no azul o imponderável vôo da águia.

Texto extraído do jornal “O Globo”, Segundo Caderno, edição de 03/01/2001, pág. 8.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Como ressuscitar seu celular depois de deixá-lo cair na água

O pior acidente que poderia acontecer com um celular é ele cair na água: seja na pia, vaso sanitário, mar, ou mesmo esquecido no bolso de uma calça que foi para a lavanderia. Geralmente este acidente costuma preceder o fato de você ter que desembolsar por um novo aparelho, porém, se você for rápido o suficiente, ainda pode haver uma chance de salvá-lo. Saiba o que você fazer nessa situação com este guia que o TechTudo preparou para você.
Demos no Defy um banho bem gelado... (Foto: Juarez Lencioni Maccarini) 
Se o seu celular não é à prova d'água, siga as dicas abaixo para tentar resgatá-lo antes de pensar em comprar um novo (Foto: Juarez Lencioni Maccarini)
Passo 1. Retire-o da água imediatamente e, antes de qualquer coisa, resista à tentação de ligar o celular (isso pode causar um curto circuito);
Passo 2. Retire a bateria, abra todos os dispositivos, remova tampas, conectores e tudo que possa ser retirado ou aberto para secá-lo melhor. Se o dispositivo for do tipo GSM, remova o chip SIM também.
Caso o celular tenha caído em água salgada é importante lavá-lo em água doce (após extrair bateria e complementos) antes de continuar o processo;
Passo 3. Agora que você já retirou bateria e o cartão SIM, seque o aparelho e os seus acessórios imediatamente. Você pode usar uma toalha de papel ou de tecido macio. Se tiver à mão, utilize um compressor de ar ou aspirador de pó para tirar toda a umidade.
Importante: nunca usar secador de cabelo ou algum tipo de máquina que provoque aquecimento do aparelho, pois ele pode danificar os circuitos por completo;
Passo 4. Agora que já tirou toda a água possível, o ideal é que use um dessecante para tirar a umidade restante. A escolha mais simples é arroz cru. Encha uma tigela até uma altura que seu aparelho não fique visível. Insira o aparelho e mude-o de posição até a hora de dormir. Deixe até o dia seguinte.
Tirando a umidade do celular (Foto: Reprodução/Teresa Furtado) 
Tirando a umidade do celular 
(Foto: Teresa Furtado)
Se você estiver preocupado com o pó do arroz, outra alternativa é o gel de sílica. Se não o tiver em casa, use o que tiver em mãos para não perder o seu aparelho. Químicos para tirar umidade de armário também funcionam;
Passo 5. No dia seguinte, retire o aparelho da tigela e coloque sobre papel toalha ou algo que absorva água e você consiga visualizar umidade. Deixe-o lá de quatro a seis horas. Passado o período, se onde ele ficou apresentar sinais de água, repita novamente o processo a partir do passo 3;
Passo 6. Certo de que não haja mais nenhum resquício de água, chegou a hora de testar o telefone. Passadas 24 horas do período em que iniciou o processo, coloque a bateria, o cartão SIM e os outros itens e tente liga-lo.
Se o celular não ligar
Passo 7. Conecte-o no carregador. Se isso funcionar, você vai precisar de uma bateria nova, pois este é o item mais provável de dar defeitos devido ao curto-circuito realizado quando o aparelho caiu na água (pelo menos tente arrumar uma bateria para testar se é isso mesmo, antes de se convencer de que o aparelho está definitivamente morto).
Passo 8. Caso o passo acima não funcione, leve-o a um revendedor autorizado. Muitas vezes eles conseguem resolver o problema. Não omita que ele foi molhado, pois as chances de o problema se solucionado são maiores se eles souberem do ocorrido. Telefones mais modernos vêm com dispositivos que denunciam se o aparelho caiu ou não na água, então nem tente mentir.
Passo 9. Se não tiver jeito, infelizmente você precisará de outro aparelho. Veja alguns modelos que possam te interessar no Globo Shopping, e passe à diante este tutorial. Quem sabe você não salve o celular de outra pessoa?

Fonte: http://www.techtudo.com.br/dicas-e-tutoriais/noticia/2011/08/como-ressuscitar-seu-celular-depois-de-deixa-lo-cair-na-agua.html

Ycaro, o bon-vivant ! - Nilson Ribeiro

Existe uma canção que diz " poeta só é grande se sofrer ". Belíssima por sinal, mas que me perdoe o nobre Vinícius de Moraes, sou obrigado a discordar, com muito respeito, da sua poesia. Todo poeta é grande, como ele também o foi, e como todos sabem, vivendo intensamente.
  Curioso é que geralmente se escreve assim, movido por uma paixão mal resolvida, uma tisteza escondida, talvez com o fito inconsciente de aliviar o peso da tragédia interior tornando-a púbilca numa folha de papel.
  Tenho um dileto amigo que não gosta de ler coisas tristes, ou melhor, pouco lê, dando vazão às atividades físicas, que é o seu forte; seja uma caminhada numa trilha ecológica montanha acima, um rapel molhado nas fímbrias de uma cachoeira silvestre ou num vôo
livre sobre as encostas seculares de uma sobrevivente mata atlântica. No pouco tempo que resta, quando se envolve numa leitura, o faz priorizando as alegres e divertidas matérias postadas na internet.
  Pensando bem, acho que não está errado não, embora possamos também aprender com os insucessos e vicissitudes alheias, nada como um texto otimista pra nos colocar pra cima e em paz com a vida.
  Vou portanto brindá-lo desta vez com algo alegre, bem leve, sem a necessidade sequer de um Houaiss como assistente.
  Veja bem, Ycaro, meu amigo, como a vida pode ser bela.
  Nascemos nús, e naturalmente nada possuímos, a não ser o cuidado materno do qual dependemos integralmente pra sobreviver durante algum tempo. E assim crescemos, desapercebidamente.
  De minha parte já estou num lucro danado, pois hoje me apresento bem vestido em reuniões,empresas, investimentos, passando com prazer de uma a outra atividade ao longo do dia, numa clara evolução do patrimônio pessoal, com dinheiro suficiente pra curtir tranquilamente sem me preocupar com o futuro incerto  que assalta a maioria dos mortais. Assim vou seguindo adiante, pretendendo viver muito ainda, privilegiando sempre a saúde física e mental em todas as instâncias; estar inteiro até o último suspiro é a meta primordial, queira Deus no conforto de um lar junto de uma bela e suave companhia; sem me ocupar com filhos e netos que ficam, cultos, educados, independentes de mim, senhores da própria sorte.
   A vida é bela e a felicidade existe pra mim desde o abrir dos olhos pela manhã, dirigindo os negócios como o faço com meu próprio carro ( zero a cada ano ), totalmente despreocupado seja com uma eventual troca de moeda no sistema financeiro, seja com uma pane do veículo numa rodovia de intenso movimento. Sempre conto com a lei da probabilidade a meu favor.
  E mesmo no rigor do inverno quero acreditar que os ventos nórdicos jamais fustigarão o meu rosto, acostumado no mais das vezes com as carícias da brisa morna que vem do mar ao fim da tarde, tendo uma caipivódca nas mãos, curtindo minha predileta praia particular a poucos metros da casa com varanda, solidamente construída em balanço sobre as escarpas do rochedo; o iate ancorado logo ali no pier dourado pelo por do Sol, jogando leve ao sabor das pequenas vagas, num plácido espetáculo da natureza.
  Nascido no litoral, num centro industrial, econômico, cultural e artístico, tudo isso reunido estrategicamente num só lugar, não tenho do que me queixar; soube aproveitar as oportunidades de crescimento, e assim me estruturar para ser um quase cidadão do mundo, falando o essencial em outros idiomas, viajando por outras terras, espalhadas pelo velho e novo continente, conhecendo-lhes as culturas e mazelas, desta forma valorizando mais e mais o meu país em cada regresso; livre das guerras, dos terrorismos e extremistas radicais, o povo aqui convivendo harmônicamente com as diversas crenças e dogmas, num interessante e invejável sincretismo religioso.
  Mesmo com a praga maior, que é a corrupção que grassa por todos os setores da sociedade, nativa como uma febre terçã ( que maltrata, maltrata mas não mata ), mesmo com ela dá pra conviver, pagando-se uma taxa aqui, um flanelinha ali, um imposto de renda acolá, ainda sobra o bastante pra sorrir entre doses de um bom uisque, um vinho de uma boa safra, até mesmo uma seleta cachaça de barril, sorrindo de uma gostosa piada de cunho político ou não, entre os amigos nos fins de semana, nos sítios, teatros e boates.
  Por que reclamar, meu Deus, se até os amores são generosos e não nos faltam, se os podemos trocar quatro, cinco vezes, e quando a paixão acabar, flertar uma vez mais sem compromisso, e namorar, namorar até platônicamente se fôr o caso.
  É, meu caro Ycaro, voce está certo com seu jeito "Pollyanna" de ser, vendo sempre o lado positivo das coisas. Pra que ler coisas tristes ?
  Bom mesmo é assistir a um belo musical na Broadway, um show de variedades, uma comédia hilariante numa aplaudida turnê que passa pela cidade, deixando o fígado completamente desopilado mesmo a despeito do champagne com caviar consumido um tanto em excesso no happy hour de poucas horas atrás. Basta de manchetes estampadas nas primeiras páginas de jornais, das chamadas de alguns noticiários televisivos, que desavisados, não conseguimos evitar a tempo.
  Vamos dar boas novas, conversar sobre coisas inteligentes, que agreguem valor...
  Alguns dirão que tenho sorte, que nasci bem. Mas saibam que estudei bastante na juventude, arrisquei muito e trabalhei duro outro tanto, mas sobretudo fiz as escolhas certas.
  No futebol por exemplo, sempre optei pelo melhor time de cada estado, no Rio, Minas , em São Paulo, por esse Brasil do penta, e pelo Barça lá fora, como não poderia deixar de ser na atualidade.
 Sempre torço pelo melhor, pra que sofrer ? Feliz entre iguais !
 Como diz Armando Aguirre, jornalista mexicano, " Eu tenho irmãos que são como meus amigos,  e amigos que são como meus irmãos. "
 Além disso, por uma questão de filosofia, jamais faço inimigos, nunca entro em discussões vazias, convivendo bem com todo tipo de gente, de qualquer nível. Nuns meios sou "gente fina', noutros "sangue bom"; o que poderia dar errado pra mim agindo desse jeito ?
  Alguns me classificariam como um bon-vivant. Se já nasci assim, só estou me aperfeiçoando com o tempo, eu diria.
  Por isso, meu jovem Ycaro, te saúdo e aplaudo. Vivamos muito e bem até o final do nosso tempo, e o melhor de tudo, celebrando sempre a vida nas menores coisas. Somos energia pura, desde o menor átomo que nos compõe.
  Parabéns !
Nilson Ribeiro, poeta ao acaso desde menino, fluminense de 57 anos, dos quais 42 de labuta, lidando com gente de todo quilate, fiz disso inspiração diária pra aguentar os trancos da vida.

Sobre os momentos roubados[delícias da vida] por Aglaé Gil

Então é isso. Estou em uma sala de cinema, prestes a assistir a um filme com Daniel Craig, um de meus atores favoritos, desta vez protagonizando uma adaptação para o cinema de um romance de suspense escrito por Stieg Larsson.
Acontece que ainda estou sozinha na sala gigante. Não é para menos, pois hoje é uma segunda-feira, são quase treze horas e a maioria das pessoas ‘normais’ está almoçando ou trabalhando. Quanto a mim, gosto de me dar esses presentes – o que tem sido cada vez mais comum desde que me ‘aposentei’.
De novo, escrevo. É o mesmo dia. Sim, ainda é a segunda-feira, 30, estou em outra sala de cinema para uma segunda sessão. Agora, vou assistir a J.Edgar [Hoover].
O primeiro filme foi ótimo e, quando ele terminou, ainda fiquei ouvindo um pouco da boa música [a trilha sonora é excelente]. Depois disso, fui ao banheiro, voltei para o café, garanti o meu, simples, com leite, sem creme, meio a meio, um salgado de queijo e entrei em outra sala, desta vez a 7.
É isso. Um presente e tanto. Registrei o momento [ou ‘os’] porque fiquei pensando nas coisas que podemos dar a nós mesmos; no que podemos fazer mesmo a sós e garantir com isso uma sensação de bem-estar e satisfação.
Assim como há pessoas que pensam que jamais poderão fazer qualquer coisa boa se não estiverem trabalhando mais de dez horas por dia e que não se sentirão satisfeitas com nada além disso, há aquelas pessoas que acreditam que precisam de muito, muito e muitas outras pessoas ao redor delas para que se sintam bem.
Pois bem. Nem uma coisa, nem outra. Sei bem que cada um é cada um e respeitar a individualidade para mim é sagrado. Entretanto, há muitas [sim! muitas!] coisas que podemos fazer e, principalmente, ter para nos sentirmos melhor. Podemos nos dar bons momentos. Podemos enriquecer nosso interior. Podemos buscar conhecimento. Principalmente quando, finalmente, temos um parceiro adorável, um [finalmente!] aliado: o tempo.
Sobra-nos um tanto a mais de horas por dia. Elas podem ser produtivas para um patrão maravilhoso que merece que seja feito o melhor dos trabalhos: nosso bem-estar. 
Isso tudo não significa estar parados, feito uns inúteis e imprestáveis, aquelas pessoas largadas e amargas que ninguém gosta de ter por perto. Não. Podemos ser sorridentes, podemos ser atuantes, fazermos valer a experiência que foi pescada em mares que navegamos, conquistada nesses oceanos de lutas e trabalho e doação. E fazer valer, primeiro para nós mesmos, cada momento roubado das horas em que, de repente percebemos, não precisamos estar em nenhum outro lugar que não seja aquele. Como o meu momento, nas salas de cinema, quando resolvo passar a tarde mergulhada em algo que amo; como as tardes em que me demoro na Livraria, bebendo café com leite e vendo o que há de novo e batendo um papo com os livreiros; como sair com a câmera para fotografar as ruas da cidade, as pedras do caminho, os passarinhos urbanos.
Como fazer natação e hidroginástica e deliciar-se com o bem que a água faz.
Permitir-se continuar crescendo, desta vez aproveitando cada momento que parece roubado como se fora aula cabulada, mas que na verdade não é. E garantir que a nossa melhor companhia, esta pessoinha que habita em nós, esteja muito feliz.
É isso.
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Referências a dois filmes ótimos,por sinal:

“Os homens que amavam as mulheres”, direção de David Fincher, baseado no primeiro volume da triologia Millennium, de Stieg Larsson. Um thriller que, como o livro, prende a atenção do princípio ao fim. O destaque é para a atuação de Rooney Mara, no papel da ‘garota com tatuagem de dragão’. E, claro, as imagens suecas.
O outro filme, “J.Edgar”, direção de Clint Eastwood, com Leonardo DiCaprio no papel do idealizador e primeiro diretor do FBI, John Edgar Hoover. É uma biografia muito bem trabalhada, com uma excelente atuação do elenco e uma direção primorosa.

Vale a pena assistir aos dois. Façam isso e depois, me digam!


Aglaé Gil, 52 anos, de Curitiba – com formação em revisão e produção de textos; pesquisadora de História e Literatura; aprendiz de viver; poeta;mãe; cidadã. [não necessariamente nessa ordem]