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segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A vida sob a ótica de um gato


O gato branco hoje ficou olhando para ela, implorando para ficar livre e solto, o dia inteiro, mas ela não notou, aí ele pensou: será que ela não me entende mais? Há doze anos vivemos juntos, lembro muito bem quando nasci, ela colocou minha mãe, eu e meus irmãos dentro de um cesto grande e passávamos de um cômodo para outro, dentro de casa. Durante muitos anos acompanhei a vida dela de perto. Era bom entrar no banheiro, pela janela, e passar para a cama deles, onde eu adormecia quentinho no inverno. E quando amanhecia, era só fazer o percurso janela do banheiro, telhado, muro, chão e ir para a rua, mas, de uma hora para outra, a vida mudou. Deram veneno para meus companheiros e cinco morreram no mesmo dia e dois foram salvos, e aí que eu vi quanto ela nos amava, chorou tanto, odiou tanto e ficou desconfiada de tudo e de todos. Cada vizinho era um assassino em potencial, até do pastor protestante ela desconfiou. Chamou um homem que veio em casa e tirou varias medidas e dias depois chegou a encomenda que, segundo ouvi dizer, custou muito caro. Cada traquitana daquela custava o preço de uma geladeira das mais modernas, e foi aí que eu vi para que serviria aquilo. Ela passou anos trancar todos os dias. Pela manhã ficávamos soltos, cuidando uns dos outros e depois do almoço era ficar engaiolado. E ela dizia, melhor engaiolado do que morto. Mesmo assim, eu sempre acompanhei a vida dela. Ela era muito amorosa, mas durante a tarde ela saía. Ela tinha um carro que foi roubado da porta de casa e no carro ela colocava caixas cheias de tintas, telas, cimento, lata velha, saco de aniagem, pedaços de ferro de construção, de vários tamanhos, madeira velha, jornais velhos, gesso, enchia o carro das coisas mais loucas. Até latas de óleo vazia ela carregava e dizia que ia estudar, mas vá lá entender esses humanos e suas maluquices. E nessas horas eu fugia, pois sabia que era hora de ser engaiolado. Quando ela voltava, ia nos ver, queria saber se estava tudo bem. Claro que para nós estava bem. Ela voltava cheia de volumes, de gesso, de argila, que cobria com panos velhos molhados. Grandes pedaços de pano. Aí, no dia seguinte, na hora do nosso recreio, entravamos pela janelinha da oficina dela e fazíamos xixi nos panos, nos gessos e nas argilas dela, e aí ela ficava furiosa, mas logo a ira passava e nós éramos perdoados. A noite ela gostava de ir para a rua. Ai como era rueira! Arrumava-se, abria a caixa cheia de potinhos, que, diga-se de passagem, eu sempre gostei daquela caixa, pois com a patinha tirava uns lápis que ela guardava, os potinhos também. Eu jogava tudo dentro da pia e depois fazia xixi em cima. Aí ela gritava, Tom, eu te matar! Mas nunca sequer tentou me estrangular, pois ela usava todos os potes no rosto e com o lápis fazia riscos nos olhos só para ficar com olhos e gatos como os meus. Aí ela abria os armários e tirava umas roupas muito esquisitas, às vezes negras, outras coloridas e vestia. Nos cabelos usava uns lenços, umas correntes de metal, parafuso, porca, arruela, pedaços de arame e tudo quanto é quinquilharia, até dobradiças tinha. E ela achava uma beleza, mas eu, hein, francamente! Nos pés ela usava umas botas que dizia terem vindo da Europa, eram umas botas de sola grossa, de borracha, e amarradas na frente. Ela dizia que era para não sentir frio nos pés. Seja lá como for, o importante é que eu virava as botas de lado e afiava as garras na sola. Ela também só usava saias longas e isso durou muito tempo. Durante o tempo que saía para estudar, era assim que ela se vestia, até que, quando terminou os estudos, um dia brigou com o marido. Ela dizia que não tinha roupa decente. Eu acho que não tinha mesmo. E o marido gritava: veja os armários! Estão lotados! E ela na fúria, arrancou tudo dos cabides e jogou pelas escadas abaixo. Aí foi um tal de encher sacos de lixo, a faxina durou uma semana. Ela chamou um tal de Mensageiro da Caridade que levou tudo e não sobraram nem as botas para eu afiar as garras. E depois desse dia ela mudou, por dentro e por fora. Os cabelos que ela lavava e secava sem pentear pra fazer cabelão, ela pintou de um tom louro e passou a fazer escova, toda a semana. As obras de arte que usava no pescoço, ela deu fim. Já não usava mais parafusos, arruelas, arames, etc. Passou a usar outros metais, chamados de ouro e prata. Comprou sapatos elegantes e bolsas, muitas bolsas. Segundo ela que me olhava e dizia: Tom não se atreva a afiar as garras nas bolsas que eu comprei e nem paguei ainda. E nesse tempo, roubaram o carro dela, que era dela porque, como era velho, ninguém queria usar e também porque ninguém haveria de querer emprestar o carro para ela encher de tinta, gesso, argila e etc, etc. Eu até pensei, que bom que fiz bastante xixi no carro, era no capô, porta malas, estava tudo com meu cheiro de felino. E ela foi se domesticando, a tal ponto que se hoje ela vê uma foto daqueles tempos até justifica dizendo que era assim que os colegas se vestiam, e ela não queria destoar deles. Foi aí que eu vi que ela não foi sempre assim tão destrambelhada para se vestir, mas durante o tempo que estudava artes, se divertia brincando com as roupas. Ela tem essa facilidade de mexer com os panos. Adora brincar com os tecidos. E eu fico olhando as caixas e caixas de tanto pano, é lenço, lencinho, lenção, é echarpe, cachecol. Ela agora faz o tipo casual comportado. Aí eu fico olhando e lembro, houve um tempo em que as coisas foram diferentes nessa casa e verdade seja dita, a filha dela também estudou artes, mas nunca vi a menina usando coturnos, saião, nem cabelos ao vento. Será que as artistas de hoje já não se fantasiam mais? Mas naquele tempo ela era mais divertida. Teve uma tarde que ela calçou uns tamancos que trouxe da Holanda e foi planar no jardim, e o vizinho da frente ficou falando com ela e o bate papo estava bem animado, mas como o jardim tem um pequeno declive, ela escorregou e caiu enquanto conversavam. Aí ela ficou com tanta vergonha que entrou em casa engatinhando e o vizinho deve ter pensado: que louca, sumir assim no meio da conversa! Que falta de consideração! Outra ocasião ela não achou a cachorrinha dela e mandou o eletricista abrir o porta-malas do carro dele, ele não queria abrir, aí ela ficou possessa e disse: vai abrir já! E ele foi contrariado por ter que largar o serviço e ela foi na frente porque achou que com tantos fios elétricos ligados, jogados no chão, era possível que a cachorrinha fosse vitima de um choque elétrico, mas a cachorrinha só foi encontrada horas depois, dentro do guarda-roupa. Por precaução ela se meteu dentro do guarda-roupa e não quis sair de lá. Eu, francamente, às vezes achava que ela estava ficando zureta, mas pensando bem, fora essas maluquices, ela é, até, muito legal e querida. Quando quiseram que ela, por causa de uma lei de 2003, escolhesse entre os bichos de estimação apenas cinco e doasse os velhos, ela ficou louca. Imagine que absurdo. Os animais de estimação são coisas sérias e não teve conversa. Ela foi até o alto escalão e provou que já nos possuía desde 98 e que nossa veterinária era a mesma e que sempre nós fomos bem tratados, castrados e vacinados. E vamos continuar juntos. Como gostei dela nesse dia! Pois a briga foi de peixe grande! E ela lutou e vai continuar lutando por nós. Afinal, ela também cuida de animais abandonados. Minha mãe foi abandonada me esperando na porta da casa dela. Ouvi dizer que ela é voluntária protetora dos animais. Ela faz parte do Bem Estar Animal. E estamos todos bem. É verdade que meio velhinhos, já não subo nas janelas, mas ela me ajuda, até me deu um banco alto para que eu veja o mundo de cima para baixo. Eu amo a minha humana. E os meus amigos também. A minha humana ama os animais e de uma coisa ela tem certeza: que a Espanha deveria ficar mais 700 anos sob o domínio dos muçulmanos para expiar a vergonha das corridas de touro. E o estado de Santa Catarina, tão lindo, tem que carregar esta mácula da farra do boi. Herança açoriana. Que vergonha! Que triste sina dessa gente que fura os olhos do boi só pelo prazer de judiar o animal. Tem boi que entra no mar, pois prefere morrer afogado do que ser maltratado, até a morte. O que se pode esperar desses animais desumanos. Quando será que algum político vai ter coragem, porque vai ter que ser muito macho, para comprar a briga da farra do boi. Todos os anos é a mesma coisa na época das festas. Ela cansou de chamar a polícia e ninguém aparecia. Depois inventaram outra moda, brincar pode, machucar não. E quem vai estar lá para conferir? Porque tanta carnificina? Porque esses frouxos não conseguem se desarmar e ser macho suficiente para deixar os bois em paz, fazem toda essa matança em nome de quê? Da origem açoriana? Quantas vidas ainda serão ceifadas até que o homem aprenda a viver e a amar a natureza. Sou um gato. Meu nome é Tom Jones, mas me chamam de Tom. Gosto de apreciar as historias da bondade humana, mas ela, a minha dona, fica uma fera com a maldade dos humanos desumanos.

Restaurandora de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura, cinema, e a paixão de escrever.

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