O gato branco hoje ficou olhando para
ela, implorando para ficar livre e solto, o dia inteiro, mas ela não notou, aí
ele pensou: será que ela não me entende mais? Há doze anos vivemos juntos,
lembro muito bem quando nasci, ela colocou minha mãe, eu e meus irmãos dentro
de um cesto grande e passávamos de um cômodo para outro, dentro de casa.
Durante muitos anos acompanhei a vida dela de perto. Era bom entrar no
banheiro, pela janela, e passar para a cama deles, onde eu adormecia quentinho
no inverno. E quando amanhecia, era só fazer o percurso janela do banheiro,
telhado, muro, chão e ir para a rua, mas, de uma hora para outra, a vida mudou.
Deram veneno para meus companheiros e cinco morreram no mesmo dia e dois foram
salvos, e aí que eu vi quanto ela nos amava, chorou tanto, odiou tanto e ficou
desconfiada de tudo e de todos. Cada vizinho era um assassino em potencial, até
do pastor protestante ela desconfiou. Chamou um homem que veio em casa e tirou
varias medidas e dias depois chegou a encomenda que, segundo ouvi dizer, custou
muito caro. Cada traquitana daquela custava o preço de uma geladeira das mais
modernas, e foi aí que eu vi para que serviria aquilo. Ela passou anos trancar
todos os dias. Pela manhã ficávamos soltos, cuidando uns dos outros e depois do
almoço era ficar engaiolado. E ela dizia, melhor engaiolado do que morto. Mesmo
assim, eu sempre acompanhei a vida dela. Ela era muito amorosa, mas durante a
tarde ela saía. Ela tinha um carro que foi roubado da porta de casa e no carro
ela colocava caixas cheias de tintas, telas, cimento, lata velha, saco de
aniagem, pedaços de ferro de construção, de vários tamanhos, madeira velha,
jornais velhos, gesso, enchia o carro das coisas mais loucas. Até latas de óleo
vazia ela carregava e dizia que ia estudar, mas vá lá entender esses humanos e
suas maluquices. E nessas horas eu fugia, pois sabia que era hora de ser
engaiolado. Quando ela voltava, ia nos ver, queria saber se estava tudo bem.
Claro que para nós estava bem. Ela voltava cheia de volumes, de gesso, de
argila, que cobria com panos velhos molhados. Grandes pedaços de pano. Aí, no
dia seguinte, na hora do nosso recreio, entravamos pela janelinha da oficina
dela e fazíamos xixi nos panos, nos gessos e nas argilas dela, e aí ela ficava
furiosa, mas logo a ira passava e nós éramos perdoados. A noite ela gostava de
ir para a rua. Ai como era rueira! Arrumava-se, abria a caixa cheia de
potinhos, que, diga-se de passagem, eu sempre gostei daquela caixa, pois com a
patinha tirava uns lápis que ela guardava, os potinhos também. Eu jogava tudo
dentro da pia e depois fazia xixi em cima. Aí ela gritava, Tom, eu te matar!
Mas nunca sequer tentou me estrangular, pois ela usava todos os potes no rosto
e com o lápis fazia riscos nos olhos só para ficar com olhos e gatos como os
meus. Aí ela abria os armários e tirava umas roupas muito esquisitas, às vezes
negras, outras coloridas e vestia. Nos cabelos usava uns lenços, umas correntes
de metal, parafuso, porca, arruela, pedaços de arame e tudo quanto é
quinquilharia, até dobradiças tinha. E ela achava uma beleza, mas eu, hein,
francamente! Nos pés ela usava umas botas que dizia terem vindo da Europa, eram
umas botas de sola grossa, de borracha, e amarradas na frente. Ela dizia que
era para não sentir frio nos pés. Seja lá como for, o importante é que eu
virava as botas de lado e afiava as garras na sola. Ela também só usava saias
longas e isso durou muito tempo. Durante o tempo que saía para estudar, era
assim que ela se vestia, até que, quando terminou os estudos, um dia brigou com
o marido. Ela dizia que não tinha roupa decente. Eu acho que não tinha mesmo. E
o marido gritava: veja os armários! Estão lotados! E ela na fúria, arrancou
tudo dos cabides e jogou pelas escadas abaixo. Aí foi um tal de encher sacos de
lixo, a faxina durou uma semana. Ela chamou um tal de Mensageiro da Caridade
que levou tudo e não sobraram nem as botas para eu afiar as garras. E depois
desse dia ela mudou, por dentro e por fora. Os cabelos que ela lavava e secava
sem pentear pra fazer cabelão, ela pintou de um tom louro e passou a fazer
escova, toda a semana. As obras de arte que usava no pescoço, ela deu fim. Já
não usava mais parafusos, arruelas, arames, etc. Passou a usar outros metais,
chamados de ouro e prata. Comprou sapatos elegantes e bolsas, muitas bolsas.
Segundo ela que me olhava e dizia: Tom não se atreva a afiar as garras nas
bolsas que eu comprei e nem paguei ainda. E nesse tempo, roubaram o carro dela,
que era dela porque, como era velho, ninguém queria usar e também porque
ninguém haveria de querer emprestar o carro para ela encher de tinta, gesso,
argila e etc, etc. Eu até pensei, que bom que fiz bastante xixi no carro, era
no capô, porta malas, estava tudo com meu cheiro de felino. E ela foi se domesticando,
a tal ponto que se hoje ela vê uma foto daqueles tempos até justifica dizendo
que era assim que os colegas se vestiam, e ela não queria destoar deles. Foi aí
que eu vi que ela não foi sempre assim tão destrambelhada para se vestir, mas
durante o tempo que estudava artes, se divertia brincando com as roupas. Ela
tem essa facilidade de mexer com os panos. Adora brincar com os tecidos. E eu
fico olhando as caixas e caixas de tanto pano, é lenço, lencinho, lenção, é
echarpe, cachecol. Ela agora faz o tipo casual comportado. Aí eu fico olhando e
lembro, houve um tempo em que as coisas foram diferentes nessa casa e verdade
seja dita, a filha dela também estudou artes, mas nunca vi a menina usando
coturnos, saião, nem cabelos ao vento. Será que as artistas de hoje já não se
fantasiam mais? Mas naquele tempo ela era mais divertida. Teve uma tarde que
ela calçou uns tamancos que trouxe da Holanda e foi planar no jardim, e o
vizinho da frente ficou falando com ela e o bate papo estava bem animado, mas
como o jardim tem um pequeno declive, ela escorregou e caiu enquanto
conversavam. Aí ela ficou com tanta vergonha que entrou em casa engatinhando e
o vizinho deve ter pensado: que louca, sumir assim no meio da conversa! Que
falta de consideração! Outra ocasião ela não achou a cachorrinha dela e mandou
o eletricista abrir o porta-malas do carro dele, ele não queria abrir, aí ela
ficou possessa e disse: vai abrir já! E ele foi contrariado por ter que largar
o serviço e ela foi na frente porque achou que com tantos fios elétricos
ligados, jogados no chão, era possível que a cachorrinha fosse vitima de um
choque elétrico, mas a cachorrinha só foi encontrada horas depois, dentro do
guarda-roupa. Por precaução ela se meteu dentro do guarda-roupa e não quis sair
de lá. Eu, francamente, às vezes achava que ela estava ficando zureta, mas
pensando bem, fora essas maluquices, ela é, até, muito legal e querida. Quando
quiseram que ela, por causa de uma lei de 2003, escolhesse entre os bichos de
estimação apenas cinco e doasse os velhos, ela ficou louca. Imagine que
absurdo. Os animais de estimação são coisas sérias e não teve conversa. Ela foi
até o alto escalão e provou que já nos possuía desde 98 e que nossa veterinária
era a mesma e que sempre nós fomos bem tratados, castrados e vacinados. E vamos
continuar juntos. Como gostei dela nesse dia! Pois a briga foi de peixe grande!
E ela lutou e vai continuar lutando por nós. Afinal, ela também cuida de
animais abandonados. Minha mãe foi abandonada me esperando na porta da casa dela.
Ouvi dizer que ela é voluntária protetora dos animais. Ela faz parte do Bem
Estar Animal. E estamos todos bem. É verdade que meio velhinhos, já não subo
nas janelas, mas ela me ajuda, até me deu um banco alto para que eu veja o
mundo de cima para baixo. Eu amo a minha humana. E os meus amigos também. A
minha humana ama os animais e de uma coisa ela tem certeza: que a Espanha
deveria ficar mais 700 anos sob o domínio dos muçulmanos para expiar a vergonha
das corridas de touro. E o estado de Santa Catarina, tão lindo, tem que
carregar esta mácula da farra do boi. Herança açoriana. Que vergonha! Que
triste sina dessa gente que fura os olhos do boi só pelo prazer de judiar o
animal. Tem boi que entra no mar, pois prefere morrer afogado do que ser
maltratado, até a morte. O que se pode esperar desses animais desumanos. Quando
será que algum político vai ter coragem, porque vai ter que ser muito macho,
para comprar a briga da farra do boi. Todos os anos é a mesma coisa na época
das festas. Ela cansou de chamar a polícia e ninguém aparecia. Depois
inventaram outra moda, brincar pode, machucar não. E quem vai estar lá para
conferir? Porque tanta carnificina? Porque esses frouxos não conseguem se
desarmar e ser macho suficiente para deixar os bois em paz, fazem toda essa
matança em nome de quê? Da origem açoriana? Quantas vidas ainda serão ceifadas
até que o homem aprenda a viver e a amar a natureza. Sou um gato. Meu nome é
Tom Jones, mas me chamam de Tom. Gosto de apreciar as historias da bondade
humana, mas ela, a minha dona, fica uma fera com a maldade dos humanos
desumanos.
Restaurandora de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura, cinema, e a paixão de escrever.
Nenhum comentário:
Postar um comentário