Seu Alcides mostra aos soldados americanos a mercadoria que valia ouro: Meia-calça!
Natal, rua Ulisses caldas, um dia qualquer do ano de 1943. Um grupo de soldados americanos visitam uma loja à procura de um item raro e valiosíssimo no período. Eles não são os primeiros. A fama da loja atravessou o oceano e, antes mesmo de chegarem a Natal, eles já sabem que precisarão visitar o lugar.
A loja é a Casa Rio –
que anos depois deu origem às lojas Rio Center, que existem até hoje na
cidade. Os jovens americanos, como sempre, vestem seus uniformes cáqui e
chamam atenção por onde passam. O que eles procuram de tão valioso?
Meia-calça de seda!
Um
par delas vale a felicidade de uma noiva, uma irmã, uma mãe, e a
gratidão eterna dessas figuras femininas quando ele voltar para casa.
A cena repetiu-se durante todos os anos em que os americanos estiveram por aqui.
Quem conta é dona Guiomar Araújo, viúva de Alcides Araújo, que administrava a loja junto com o pai.
“Os
americanos ficavam doidos quando viam que a gente vendia meia-calça.
Eles diziam que não tinha mais meia-calça no mundo por causa da guerra.
Compravam muito, pagavam em dólar.
Eu
e Alcides tivemos que pedir muito mais peças para o fornecedor em São
Paulo. Era um pedido tão grande que o fornecedor achou que a gente
estava de brincadeira, e ligou muito pra mim muito chateado. Eu disse
‘mande as meias que eu pago adiantado’!
Enquanto
os americanos estiveram por aqui, vendi mais meia-calça que na minha
vida toda, eu acho” relembra ela, com uma memória irretocável para os
seus 90 anos.
Dona Guiomar na porta da loja. Notem o “english spoken”
A
história contada por dona Guiomar nos diz muito sobre a realidade de
Natal no período da Segunda Guerra, principalmente sobre a moda e sua
ligação com os hábitos e costumes da população – que é o que interessa a
este artigo. Mas para entender o que acontecia, precisamos
primeiramente entender como a Segunda Guerra Mundial modificou a moda no
mundo.
A guerra e o mundo
Os tailleurs com ares de uniforme militar, caracterísitcos dos anos 40
No
início dos anos 40, Paris ainda dominava a geografia da moda. Podia-se
dizer que a capital francesa era o centro do mundo no mapa da alta
costura. E foi a partir de Paris que vieram as mudanças drásticas,
impostas pela Ocupação, que transformou o visual das mulheres da década
de 40.
A
estética do glamour dos anos 30 foi declarada decadente pela política
nazista alemã. No livro ‘A moda do século’, François Baudot registrou:
“A
parisiense emagrece, suas roupas ficam mais pesadas e as solas de
sapatos também. (…) assim, a partir de 1940 está proibido mais de que
quatro metros de tecido para um mantô e um metro para chemisier (exceção
feita apenas para as grávidas). Nenhum cinto de couro deve ter mais de
quatro centímetros de largura.”
Durante
toda a década, a estética será dominada pelo racionamento de roupas, a
economia de botões e outros aviamentos e a reciclagem de peças antigas - teria surgido aí a customização?
Além disso, as mulheres sofrem com o sumiço da meia-calça. Todo o naylon e a seda produzidos na Europa eram aproveitados na fabricação de pára-quedas, e as – antes elegantíssimas – parisienses agora tem que se contentar com o uso de meias soquetes.
Com
o tempo, as meias curtas passam a ser utilizadas até mesmo com vestidos
de festas. Outra alternativa é maquiar as pernas e desenhar um traço
fino na parte de trás, lembrando a costura da meia-calça. Essa é uma
imagem icônica do período.
É
famosa – e curiosa – também a história contada no livro ‘Moda &
Guerra: Um retrato da França ocupada’ , de um soldado que, ao fim da
guerra, levou o pára-quedas na mala para fazer o vestido de noiva da
namorada.
E assim as pessoas sobreviviam nos duros anos 40.
O tailleur com ares de uniforme militar, de ombros largos e saia reta, é o modelo mais usado no período.
O
unico elemento do visual feminino que não sofreu racionamento foram os
chapéus. Isso fez com que a moda subisse – literalmente – à cabeça das
mulheres, e se a roupa e os sapatos eram bem modestos, os chapéus e
turbantes eram verdadeiras esculturas. Serviam para dar um ar mais
arrumado ao visual, mas também para esconder cabelos mal cuidados e mal
cortados, carentes de um salão de beleza.
O
lenço na cabeça, usado pelas moças que foram trabalhar nas fábricas,
logo foi incorporado ao visual feminino em todas as camadas da
sociedade. Da operária à mulher do oficial – a única que ainda tinha
algum dinheiro para comprar roupas novas.
Foi
com o dinheiro das mulheres dos oficiais nazistas que a alta costura
conseguiu sobreviver, mesmo que em coma, nesse período.
Os
historiadores são categóricos em afirmar que, caso a alta costura
tivesse parado de produzir por completo durante os anos de guerra, a
França haveria perdido para sempre o lugar que ocupa no mapa da moda, o
que mudaria completamente o panorama da moda atual.
A moda que subiu à cabeça
A guerra e Natal
Se
à época da guerra Paris era um grande parque de diversões que foi
fechado por falta de energia, Natal não passava de uma pequena vila que
começava na Ribeira e terminava no Tirol. É difícil para as novas
gerações imaginar essa antiga ordem da cidade, onde Ponta Negra era uma
distante praia de veraneio.
Com
os americanos veio também uma revolução significativa nos costumes da
cidade. A professora e pesquisadora Josimey Costa registrou no
documentário ‘Imagem sobre imagem – a Segunda Guerra em Natal’
depoimentos que remontam a influência que a guerra e a chegada dos
americanos tiveram sobre Natal.
E
o que mais chamou atenção da pesquisadora foi que a guerra era
excitante para os moradores da então pacata capital potiguar. “Quando
comecei a pesquisa eu tinha a ideia de que foi um período de tensão, que
as pessoas viviam oprimidas, com medo da guerra chegar aqui. Mas o que
percebi é que as pessoas vivem apesar disso e encontram – mesmo nos
períodos mais trágicos – momentos de alegria”.
Os momentos de alegria trazidos pela guerra eram os bailes, a bebida, os chicletes, a música e os belos e
jovens soldados de cabelos loiros e olhos azuis – biotipo totalmente diferente dos potiguares. Um dos
entrevistados de Josimey no documentário, Alvamar Furtado, fez uma comparação interessante:
“Natal foi invadida por uma multidão de príncipes encantados”.
E quem tem tempo para ficar oprimido com tanta novidade na cidade?
Talvez
só mesmo os rapazes natalenses, que perdiam feio para os americanos na
hora da paquera. Os nativos eram formais, usavam terno e chapéu de
palhinha. Já os estrangeiros, quando não estavam de uniforme, usavam
camisas coloridas por fora da calça – sem “ensacar” como dizemos por
aqui – e as mulheres achavam isso um charme.
Dona Guiomar lembra que os soldados também iam à Casa Rio comprar Chanel Nº 5,
outro item escasso que fazia sucesso durante a guerra. E que isso deu
margem para um golpe que ficou famoso na época: “tinha gente em Natal
querendo dar uma de esperto.
Eles pegavam vidros de Chanel Nº 5
e dividiam em vários frascos. Completavam com outro perfume barato e
vendiam para os americanos. Eles eram loucos por esse perfume, e
compravam muito. Muitos caiam no golpe”, conta.
Anúncio anterior à II Guerra, década de 30
Também
foram os americanos que trouxeram os calções curtos de helanca para os
banhos de mar em Ponta Negra e Areia Preta. Antes disso, os rapazes
natalenses usavam calções compridos na praia.
As moças passaram a querer usar maiô aberto nas costas, como as atrizes de Hollywood e as pin-ups dos calendários.
Mas por aqui a vigilância dos pais ainda era severa, e as mães geralmente cobriam as costas do maiô com uma peça de croché.
Foi
a época também em que as mulheres começaram a usar calças compridas à
la Marlene Dietrich. Só as solteiras usavam, não ficava bem para uma mãe
de família andar de calças por aí.
E as moças que usavam eram “mal faladas”.
Marlene Dietrich, a musa de calças compridas
Os
cabelos eram cacheados com bobs, as moças perdiam horas ondulandos os
fios. Apesar do racionamento de tecidos no resto do mundo ter feito as
saias minguarem, por aqui elas ainda eram rodadas. Ideais para balançar e
rodopiar nos bailes do América.
Há estudos que defendem que nem tudo foram flores nesse período. Os preços por exemplo subiram vertiginosamente. Havia muito dólar circulando, e o comércio cobrava como se todos tivessem o mesmo rendimento dos americanos, quando na realidade a cidade era, de uma forma geral, muito pobre.
Mesmo assim, a maioria das pessoas que viveu aquela época a lembra com saudosismo, como uma época de ouro da cidade.
Talvez
porque, em termos de moda e estética, Natal era uma bolha de glamour
num mundo castigado pelo racionamento. Não faltava meia-calça nem Chanel
Nº 5, mesmo que a maioria da população não tivesse o hábito de usar nem um nem outro.
Texto originalmente publicado na revista Glam #11. As duas primeiras imagens
que ilustram o artigo foram cedidas por Minervino Wanderley.
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