O sexo livre dos índios e a serventia das negras misturados ao desejo de povoar dos portugueses moldaram a sexualidade nacional e estão na raiz da nossa miscigenação
Débora Rubin
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Coletivo Sem casas estruturadas e vivendo em grupos, fazer sexo era algo quase público
Quando a Santa Inquisição chegou ao Brasil, no final do século XVI, a missão era perseguir os judeus que não estavam se comportando de acordo com os preceitos impostos aos cristãos novos. O problema é que quando o padre Heitor Furtado de Mendonça, o representante do Santo Ofício, aportou no Nordeste, praticamente não encontrou nenhum judeu. Em compensação, se deparou com um cenário completamente inesperado: promiscuidade, lascívia e depravação. Os habitantes da colônia, aos olhos do inquisidor, definitivamente viviam em pecado.
Pudera. Juntou-se debaixo dos trópicos a sexualidade exercida sem culpa pelos índios e, posteriormente, pelos negros africanos com o desejo lusitano de povoar a terra para dominá-la por completo. Somava-se ainda a longa distância entre a colônia e sua sede. O resultado foi um cenário no qual os recatados habitantes de Portugal jamais sonhariam viver em terras europeias – homens poligâmicos, índias nuas que se mostravam disponíveis e até padres e freiras com parceiros sexuais –, segundo relatos do próprio dom Heitor. Esse quadro ajudou a formatar a moral sexual vigente até hoje no Brasil, em que culpa cristã e prazer se esbarram o tempo todo, além de estar na raiz da nossa miscigenação. Quem gozava dessa grande farra libidinosa eram os portugueses. Às mulheres, cabia viver o que lhes era permitido (leia quadro). Ainda assim, muitas delas foram vítimas da Santa Inquisição.
“As punições no Brasil foram brandas porque dom Heitor nem sabia o que fazer com os hereges sexuais”, afirma o psicólogo e pesquisador Paulo Rennes Marçal Ribeiro, coordenador do Núcleo de Estudos da Sexualidade (Nusex), da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), de Araraquara, que está à frente de uma extensa pesquisa sobre o comportamento sexual no Brasil. O pecado principal era a sodomia. Enquanto na Europa os sodomitas eram enterrados vivos, no Brasil tinham de usar vestes de hereges, orar, jejuar ou pagar uma quantia em dinheiro. Outros pecados anotados por dom Heitor foram a bigamia, a fornicação (sexo entre solteiros, adultério, relação com freiras ou animais) e a masturbação.
Recato Mesmo sem fazer nada, mulheres brancas também foram punidas pela Inquisição
Para a historiadora Mary Del Priori, o sexo nos primeiros séculos da história do País ficou marcado pela dupla moral. A doutrinação católica para que as relações existissem apenas dentro do casamento e com fins reprodutivos fez com que os homens separassem a relação liberada pela Igreja da praticada para lazer. Dentro de casa, geravam herdeiros. Fora, tinham prazer. E, de lambuja, tinham bastardos, muito úteis para a colonização. “Ainda hoje temos os resquícios dessa dupla moral”, diz ela.
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Lascívia As índias deixaram os colonos em êxtase e os jesuítas em pânico
Para fazer o levantamento sobre o período colonial, o núcleo da Unesp analisou não só os relatórios feitos pela Inquisição como as cartas do padre Manoel da Nóbrega, que liderou a missão jesuíta. Das 46 escritas por ele, metade tem conteúdo sexual. Ao contrário dos religiosos que já estavam na colônia e, muitas vezes, também viviam amancebados com índias, os jesuítas eram os verdadeiros arautos da moralidade – os “soldados de Cristo”, como define Ribeiro. Os religiosos da Companhia de Jesus se chocavam com a nudez e a naturalidade dos índios em relação ao sexo. Daí o esforço em catequizá-los.Com a chegada dos escravos negros, a situação só se agravou. Afinal, como escreveu Gilberto Freyre no livro “Casa Grande & Senzala”, “não há escravidão sem depravação sexual”.
O comportamento sexual desse período da história também ficou marcado pela falta de privacidade. “Com as construções precárias e as famílias vivendo juntas em grandes cômodos, era comum os casais terem relações sobre a relva ou na frente de outras pessoas”, explica a historiadora Mary. Somente com a evolução da arquitetura e a influência das mobílias européias na decoração é que o sexo foi parar em cima da cama e entre quatro paredes.
Quando a religião deixa de ter tanto peso na vida do brasileiro, com a expulsão dos jesuítas no século XVIII, entra em cena a medicina e suas noções de higiene e saúde pública. Os médicos começam a mostrar que o sexo é responsável por várias doenças. De pecaminoso, ele passa a ser sujo. E é somente no século XX que o tema se torna público, a partir da publicação de diversos livros e dos movimentos sociais como o feminismo e a contracultura.
Nas últimas décadas, o comportamento sexual se viu ainda modificado pela invenção da pílula e pelo surgimento da Aids, por exemplo. “Todos os fatos da história marcaram nossa educação sexual. Quanto melhor os compreendermos, mais fácil entender a forma como pensamos e vivemos nossas relações”, conclui Ribeiro. No Brasil Colônia conseguimos ver a essência do que somos: profundamente contraditórios quando o assunto é sexo.
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