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sábado, 23 de abril de 2011

"My bullying" - Cuidado para não demonizar toda molecagem e santificar toda fraqueza

Confesso: fui vítima de bullying nos tempos de escola, o colégio judaico A. Liessin, na Visconde de Ouro Preto (com a transversal em chão de terra até o campo de futebol) e, mais tarde, na esquina da São Clemente com a Sorocaba. Na época usávamos uma porrada de palavras - inclusive a própria palavra "porrada" - para designar o que hoje se convencionou chamar de bullying. Não era, contudo, porrada de quebrar dente nem osso. Nunca ninguém morreu ou ficou aleijado. Eram socos que se esgotavam num susto. Empurrões que derrubavam. Chutes que deixavam marca roxa. E a intimidação moral, essa, o horror.


Eu levava muita porrada (soquinhos no braço e no estômago, sufocantes), tapas estalados com as costas da mão no saco, puxões de cueca sanguinolentos. Principalmente do vilão da turma. Ele queria que eu reagisse. "Vou fazer de você um homem". Mas, mesmo tendo chegado à faixa verde do judô, eu tinha medo combater à vera. Achava que ia morrer, perder um olho, sentir dores lancinantes.


Era filhinho de mamãe. E mamãe não queria que eu fosse às colônias de férias dos movimentos judaicos de esquerda. Não por causa da esquerda, mas do seu medo de que eu pegasse tifo. Tétano. Meningite. Ou arrebentasse a cabeça num córrego.


Todo ano eu via o pessoal voltar com uns arranhões, eventualmente um gesso, contando histórias sobre ter sido empastado à noite e acordar num puta frio de serra com a cara, a bunda e talvez até além-bunda untadas de pasta de dente. Mas todos voltavam mais fortes, livres, soltos, contando histórias de travessias de rios e beijos na boca .


Eu ficava empacado na timidez. Magoava-me o "sacanear", a mágoa ficava evidente, e virava bola de neve até os ápices do riso coletivo e da humilhação de me ver, por exemplo, à janela constatando que minha mochila e todo meu material foi jogado num canteiro de obras. Ou ouvir uma garota de quem você é a fim te chamar de bundão.


Sim, o "pele". O saco de pancadas. Mas a verdade nua e crua se impõe: eu era mesmo um bundão. O quanto a culpa era da minha adorável mãe, do meu querido e bonachão pai, da genética, das dinâmicas psicossociais ou de mim mesmo (senhor do meu ser e da minha covardia), não importa. Vejo isso hoje. Só que à época eu culpava o mundo, e aqueles crápulas que judiavam de Arnaldinho, o menino bom, mereciam toda a fúria dos céus. E o menino bom passava as noites imaginando formas de matá-los, trucidá-los, torturá-los. Nunca levei o plano a termo.


O vilão tinha razão. Por mais que a galera se excedesse, despejando as próprias mágoas no mais fraco, era a minha pose, meu ar superior, meu silêncio humilhado e ofendido, que os ofendia. Acabava no meio da roda por uma ânsia deles (primitiva) de que eu descesse do pedestal, misturasse-me ao povo (mesmo que o povo fosse uma elite), saísse no tapa, no abraço, na correria, no vamos-ver.


Começara cedo. No maternal me vejo bem pequeno numa caixa de areia com dois amiguinhos e, de repente, levanto-me furioso, levo meu balde e minha pá e deixo-os lá, aos risos. Não recordo uma palavra. Só a desconfiança de que eu já era o pato de todas as piadas, o bebê chorão. Por livre escolha.


Uma vez, já no primário, me vi chorando. O vilão se aproximou e disse: "Isso, chora, desabafa". Parecia de fato querer me ajudar. Éramos amigos. Convidava-me à casa dele. Levava minha guitarra laranja junior com o pequeno amp. Ele tinha uma bateria. Fazíamos um som. "Era um garoto, que como eu, amava os Beatles e Rolling Stones".


Mas na escola o armistício era anulado. E muitas vezes ultrapassava a faixa que divide pedagogia heterodoxa e abuso cruel. Como aquela tarde no meio de uma aula de geografia. Um peteleco na bochecha a cada três minutos. Alguém aí já levou peteleco na bochecha? É das dores mais absurdas que há. E eu aguentava sem um pio. Até ecoarem nas têmporas latejantes as próprias palavras do vilão: "Reage, Arnaldo. Reage!". E larguei o braço, atingindo em cheio seu sobrecenho com meu cotovelo ossudo.


Uhhh! Essa doeu... Tanto que o vilão cobriu a cara. Ficou recolhido pelo menos dois minutos. Recuperado, revidou com dois socos moderados pouco acima do queixo, na lateral. Afundei a cabeça entre os braços na escrivaninha. Chorei sem fazer um só ruído. Recomposto, fui à professora e pedi para ir ao banheiro, sem nada dizer sobre o ocorrido. Na volta ele me recebeu com o rosto sério.


- Finalmente, você virou um homem - disse, apertando minha mão.


Estava ainda longe de ser verdade. O vilão, e outros, me sacaneariam ainda muito até que seguíssemos para a vida universitária. Hoje, somos amigos de encontros eventuais, e ele se transformou numa das pessoas mais gentis e pacíficas que conheço. Foi uma figura central da minha formação, e a ele sou grato por tudo. Bom, por quase tudo.


Contei essa história porque me preocupa o uso do termo "bullying" para demonizar toda molecagem e vitimizar toda fraqueza. Cada criança tem seu jeitão e sua porção de culpa por seus próprios dissabores. A violência desmedida deve ser contida, mas não às custas das lições que a experiência da vida franca ensina, com toda a dor que a acompanha.
Via O Globo, crônica de Arnaldo Bloch

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