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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Olhar Urbano - O homem-cavalo, Teresa Santos


A primeira vez que percebi a loucura, ela vinha sob a forma de um homem-cavalo.
Tinha nove anos quando deparei com aquela figura estranha e assustadora.
Se vestia como se fosse um peão.
Sempre de camisa xadrez, calça rancheiro (a atual calça "jean"), um chapéu e botas com esporas douradas e sempre reluzentes. Nunca o vi sujo, mal penteado ou a barba por fazer. Era um homem bonito e alto.
O que mais me chamava atenção era o rabo de cavalo de crina amarrado na cintura e de um cavalinho de pau, que ele montava.
O seu andar não era normal. Usava uma espécie de ferradura na sola do sapato que emitia aquele som característico de um trotar.
Gostava de "andar" pela Rua Monteiro de Melo, no bairro da Lapa (em São Paulo) e era alvo de risadas e brincadeiras das pessoas.
Detestava quando alguém tocava em seu rabo de cavalo. Virava a cabeça e relinchava como doido.
Uns diziam que ele fazia tipo. Outros tantos que era um lunático que gostava de atazanar.
Com o tempo me acostumei com aquela figura e um dia perguntei ao meu avô paterno quem era aquele homem que eu chamava de "homem cavalo".
Meu avô, então, me contou o que sabia a respeito.
Diziam que ele era o quinto e último filho de uma familia de fazendeiros abastados de Campinas.
E que desde pequeno manifestava uma tendência esquisita de não falar e só soltar sons estranhos como se cavalo fosse.
Os pais o levaram a tudo quanto foi canto para resolver aquele problema. Quando a medicina não deu um diagnóstico, partiram para o mundo da espiritualidade. Foram praticamente em todos os segmentos religiosos. E também nada tiveram sucesso. Cada segmento dizia uma coisa.
Enquanto isso ele crescia... .
Até que os pais resolveram deixá-lo à própria sorte e vivenciar sua loucura, que era de querer ser cavalo de duas patas.
De toda esta bizarrice o que mais me deixava (e até hoje me deixa) curiosa era de nunca ter falado. Só emitia sons.
Entendia o que falávamos, mas não conseguia se expressar.
E nós, por conseguinte, não conseguíamos decifrar seus relinchos.
Soube, há pouco tempo, que faleceu em uma casa de repouso destinada às pessoas com problemas mentais.
Foi enterrado com as roupas que gostou de usar. Inclusive com o seu rabo de cavalo.
 
Teresa Santos, 60 anos, paulistana. Aposentada, mas na ativa. Formada em Letras pela Universidade São Paulo. Gosta de estudar idiomas, de viajar, de ler  e de observar o mundo. Considera o ser humano a melhor personagem para seus escritos. É grata à vida  e se considera uma pessoa feliz.

12 comentários:

Luiz Roberto disse...

Gostei muito desta crônica. Relata, com exatidão, a nossa visão de um mundo que não entendemos: o mundo dos "loucos". Eu, vagamente, lembro desta pessoa. Mas como diz a famosa música:"...mais louco e quem me diz, e não é feliz, eu sou feliz." Com certeza, Ele era feliz.

Claudia disse...

Oi Teresa, Adorei a nova crônica, pude visualizar a figura descrita em seu relato. Mais uma vez você arrasou!

Teresa Santos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Teresa Santos disse...

Obrigada Claudia pela sua forma sempre carinhosa de se expressar.

Luiz Roberto, creio que sim. Ele, à sua maneira, era feliz. Com certeza os Lapeanos, caso leiam esta minha crônica, irão se lembrar desta pessoa.

André Tiago disse...

Teresa, não só os Lapeanos, mas Osasquences e demais pessoas das regiões vizinhas. Tenho 34 anos, e vendo sua crônica, me sinto aliviado. Sim, pois vejo que não sou ô único a se encantar com cenas do cotidiano, e perceber como certas coisas, por mais estranhas, bizarras e para alguns maluquices insignificantes que relatomos marcam nossas vidas.
tenho 34 anos, e das vagas memórias que ainda guardo dos meus 3, 4 anos de idade, o "Homem Cavalo" é uma que me marca e me intriga até hoje.
Me lembro tê-lo visto pelo menos umas duas ou três vezes no terminal de ônibus da Vila Yara, em Osasco. Nessa época na qual o terminal ainda era bem simples, com a presença de carrocinhas de doces e cachorro quente, aquela atmosfera de tardes quentes de verão a lá 'pasmaceira' de Eça de Quairoz - que hoje não parece mais a mesma, ou não as sinto da mesma forma - , com os motoristas saindo dos ônibus suados e se enchugando com a surrada toalha sempre sobre o ombro, fumaça preta saindo de escapamento barulhentos compondo aquele cotidiano... Enfim, tento aqui reproduzir o que eu também via e sentia, e acompanhdo de minha mãe, ficava intrigado com aquele personagem, o qual interagia com o meio, com as pessoas de forma natural.
Me lembro dele ter conversado brevemente com minha mãe. Ele falava pouco, mas era calmo, doce, e assim como minha mãe, as demais pessoas que já haviam se habituado com ele, também o tratava com respeito. Pelo menos ali foi o que vi e o que minha mãe me confirmou.
em minha inocencia de criança, o que mais me intrigava era aquele homem sem camisa, de shortes e bota, sem camisa e com um rabo de cavalo. Me recordo de ter ficado um pouco assustado na primeira vez que o vi, mas também curioso. Perguntei a minha mãe: "Mãe, por que o homem tem aquele rabo de cavalo? E ela me respondeu, tentando me sensurar e evitar constrangimentos: "Porque tem." E como doda criança, um "por que" foi pouco: "Mas por que?", e ela respondeu o que até hoje não saiu da minha memória: "Porque ele é o Homem Cavalo". Me calei, mas de boca aberta, pensando: "O Homem Cavalo!".
Na minha inocência de criança, levei anos para entender que o rabo não era de verdade, o que foi frustrante... Mas agora, lendo a crônica acima, me arrepio, ao perceber que era sim, verdadeiro, não só o rabo de cavalo, mas todo o Homem Cavalo, e mesmo que ninguem acredite ou consiga imaginar, ele ainda é real, na memória de quem o viu.

YESNO disse...

Conheci esse rapaz quando eu era quase um menino e andava pelas ruas da Barra Funda e Santa Cecília.

Frequentemente ele era visto dentro dos ônibus azuis da Viação Útil que iam da Barra Funda até Santo Amaro. Descia trotando ou correndo pelas calçadas para espanto e riso alheios.

Hoje deve estar galopando noutras trilhas talvez mais verdes do que as que cortam nossos sonhos.

É bom saber que há quem o tenha visto, para que não digam que eu sou pescador quando conto histórias.

Abraços.

Anônimo disse...

Me lembro bem do Cavalo;
Ele circulava bastante aqui por Pirituba nas proximidades da estação do trem.
Entre 1960 e 1970 a boiada chegava de trem em Pirituba; era descarregada no mangueirão; que era um grande curral onde o gado ficava retido por um ou dois dias para se recuperar da viagem de trem vinda do interior e de outros estados. Num primeiro período, os boiadeiros tocavam esta boiada a cavalo pelas ruas de Pirituba até o matadouro da Armour na Vila Anastácio; posteriormente este gado era embarcado em carretas para seu destino.
A tropa de cavalos dos boiadeiros ficava num cercado ao lado do gado no mangueirão; lembro-me que o Cavalo ficava lá entre eles, imitando os trejeitos dos animais, batendo os pés, tentando relinchar, e outros gestos característicos.
Usava ferraduras e um rabo de cavalo na parte de trás da cintura, lenço no pescoço e chapéu, a molecada que acompanhava o trabalho dos boiadeiros na lida com o gado tinha medo dele, pois ele ameaçava de dar coices.
Cavalo é uma figura lendária pra quem viveu aquela época........

Alcir Pompone
pezolico@ig.com.br

Teresa Santos disse...

É... meus caros...
Quem diria que, ao escrever esta crônica, tantos fossem se lembrar do Homem Cavalo.
Interessantes as lembranças deixadas.
Obrigada.

Unknown disse...

Acho que ele era um Sátiro que ficou perdido no tempo, fantasiado de gente, muito louco!, eu o vi com meus próprios olhos. Dionisíaco...

Arleide disse...

Numa tarde!
de repente..., num breve insayt, um traço de lembranças, memórias adormecidas, a figura de um homem que usava apetrechos rabo e ferraduras de cavalo e fez parte da fatasia mítica de minha infância, medos e curiosidades (por não entender o ser real) . Entrei na net e pan...num passe de mágica encontrei.
OLHAR URBANO-O homem cavalo TERESA SANTOS.
Fiquei saudosa e feliz em saber que alguém resgatou esta verdade, para o conhecimento dos mais jovens e a afirmativa das lembranças de pessoas como eu, que
nessa época, década de 60/70 morava em Sampa mais preciso na freguesia do ó, que saudade!!!, e lembro-me bem desta figura pelas ruas da lapa, perto do mercado e estação de trens, qdo ia ao comércio com minha mãe, ela não lembra mais, e minhas outras referências desta época já partiram, meu pai e irmã. Hoje eu moro em outro estado, onde ninguém conhece o fato.
Parabéns! Teresa Santos.

Reinaldo Trindade disse...

Já peguei ônibus com ele na década de 70, da Lapa para Osasco... de vez em quando ele botava a cabeça para fora da janela e relinchava....meu Pai falava que foi uma praga que jogaram nele....vai saber....

Malugili disse...

Não é uma crônica, foi um fato real de um homem que desde 1978 era conhecido no bairro da Freguesia do Ó, Bairro do Limão e Lapa. Se estivesse vivo teria hoje 80 e poucos anos.