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sábado, 20 de agosto de 2011

24 horas, por Nadia Foes

Naquela manhã ela acordou e disse ao marido: estou cansada, cansada desta pasmaceira, não acontece nada de novo. Cansada da rotina diária e quero ficar longe de você. Nem que seja só por 24 horas. Quero ficar comigo. Já não me reconheço mais. E depois disso foi cuidar da vida. Alimentou e higienizou 16 gatos e o cachorrinho. O cachorrinho tão doente e tão velhinho que só vivia dentro de um cercadinho, daqueles de bebê. Tratou do bichinho com maior carinho e disse: querido, não é nada pessoal, mas tenho que ir, prometo que volto logo. O marido providenciou as passagens, os filhos ficaram preocupados, até parecia que ela estava indo pro Iraque. As meninas deram a maior força e ela começou os preparativos para viajar. O filho disse: mãe, por favor, cuidado, a cidade é grande e perigosa, podem te agarrar. Ela e pensou: quem sabe se não é disso que estou precisando, de emoção! E aí ela lembrou: o que fazer com o cãozinho tão velhinho e sentiu uma dor no coração. Ligou para a médica veterinária e pediu para que ela hospedasse o cãozinho por dois dias e a médica respondeu: me desculpe amiga mas tenho medo de ficar com ele e que ele venha a óbito. Aí ela respondeu: se ele ficar aqui em casa, aí sim ele virá a óbito pois necessita de medicação e meu marido vai ficar só e não sabe lidar com animais. Ligou para outra veterinária e pediu: por favor você pode me indicar uma pessoa boa para vir em minha casa cuidar dos meus gatos? A veterinária respondeu: chame o Babacão que ele vai. Meio confusa ela perguntou: como?! Babacão?! A veterinária deu um número de telefone e ela pensou: era só o que me faltava, ligar e perguntar, por favor seu Babacão está? Aí a veterinária explicou: não o nome dele é outro, Babacão é a empresa dele, especializada em cuidar das caminhadas de cães. Ligou para o Babacão, negócio fechado. Deixou tudo muito bem organizado e foi viajar.  Saiu no vôo das 6:00 horas, uma hora e pouco depois chegava em São Paulo. Apanhou a bagagem e se dirigiu para a fila do táxi com preço fixo. Quando chegou a vez dela, a atendente perguntou: tem cartão de crédito? Pois aqui não entra dinheiro. Ela estendeu o cartão e veio a pergunta: crédito ou débito. Ela respondeu débito. A moça pediu: tecle sua senha e a fila atrás dela não parava de crescer. E ela respondeu:  não tenho a senha, sou dependente do meu marido. Nesse caso, então, vamos fazer crédito, disse a moça. Ela saiu dali pensando: quem sou eu afinal, nem senha eu tenho. Foi aí que ela compreendeu que tinha passado a vida toda dentro de um regime patriarcal e que apenas trocou de dono, passou das mãos do pai para as mãos do marido. Suspirou, entrou no táxi, e disse: vamos para a Avenida Paulista. Deu o nome do hotel e no caminho notou tudo muito parado; ninguém no transito. Logo São Paulo que o slogan é São Paulo Não Pode Parar. Pois justo naquele dia, parou. Perguntou ao taxista: porque está tudo tão calmo hoje se já estive aqui em finados e estava o maior movimento. Era o dia da consciência negra e a cidade estava literalmente parada. Ela pensou: meu programa de ver a exposição de Tarsila Amaral no Memorial da América Latina já foi pelos ares. Chegando no hotel deixou as malas e perguntou ao recepcionista: tem algum lugar aberto para compras, hoje? Ele disse que sim. Ela foi às compras. Foi almoçar no mercado municipal. Andou pelas ruas, não se arriscou ir muito longe. E voltou para o hotel. No saguão comprou um lanche, subiu, tomou um banho, lanchou e deitou. Era apenas 17:30. Nem a televisão ela ligou. Tudo o que ela queria era ficar um pouco em silencio. Na manhã seguinte saiu depois do café da manhã, fez mais algumas compras e foi procurar um restaurante que ela já conhecia. Depois do almoço perguntou ao garçom: onde fica o Largo do Paissandu? Ele explicou que ela poderia ir a pé, mas era meio longinho. Foram quadras e quadras de caminhada, mas como foi bom fazer o percurso de Mário de Andrade, um de seus autores preferidos. Sentiu uma brisa gostosa batendo no rosto e a sensação de liberdade. Afinal, a quarenta anos ela não ficava só consigo mesma. Logo em seguida voltou ao hotel e pensou na vida como ela é. Pensou nos filhos, no marido, na vida que ela escolheu e voltou para sua rotina. Hoje ela pensa: lá se vão dois anos. Depois disso fez outras viagens mas ficar só e calada durante 24 horas não mais. Há mulheres que precisam de uma porção mais de liberdade e ela se contentou com apenas 24 horas.
Mais trouxe consigo a saudade do Mário e lembrou trechos do passeio que fez e lembrou de um trecho do poema Lira Paulistana que diz:

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade
Saudade

Meus pés enterrem na rua da Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia

O nariz guarde nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade
Saudade...

Os olhos no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho da Universidade
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

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