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quarta-feira, 21 de março de 2012

Quebra de paradigma - Nilson Ribeiro

   Os dias têm sido de uma sequência linda, há muito não chove.
   E hoje também amanheceu assim, com céu azul de brigadeiro; a Lua, totalmente cheia pode ser vista para os lados do poente, bem clarinha, convivendo ainda por alguns momentos com o Sol, que surge alaranjado, diametralmente oposto sobre uma distante cordilheira.
   Em dias assim dá vontade de ser feliz, sair por aí absorvendo toda essa energia que emana da natureza, querendo tornar duradoura essa fugaz paz matinal.
   Hoje, em pleno domingo e já estou cedo fora da cama, hábito adquirido durante anos e anos de trabalho na indústria. Já não consigo dormir até mais tarde como gostaria em alguns dias, principalmente quando chove e como acontecia gostosamente na minha infância. Hoje, porém, sei que valerá a pena; iremos daqui a pouco ao sítio de um grande amigo para um belo churrasco. Só estou esperando minha esposa e filha acordarem.
   Vai ser tão bom poder colocar os pés em contato com a terra, sentindo a maciez da grama molhada pelo orvalho recente no campinho ao lado da churrasqueira, saboreando uma tenra fatia de picanha mal passada, tomando uma cervejinha gelada entre um bom papo, algumas piadas e outras tantas amenidades. Impossível não querer conciliar essas coisas boas, todas juntas num dia como esse, todo ensolarado.
   Inopinadamente porém, me bate uma preocupação, causando um frio no estômago, pois temos vivido atualmente sob o império da lei seca, acossados até após um inocente bombom de licor.
   Como ficará  a volta pra casa depois daquela cervejinha no sítio, depois do reencontro agradável com os amigos ?
   Tirei minha carteira de habilitação de forma profissional em plena flor da idade, aos 18. Trago no meu currículo mais de 40 anos no trânsito com a marca invejável de zero acidente, isso apesar do tanto de "barbeiros" com quem cruzo diariamente. Difícil conceber, não ? Mas é a pura verdade. Jamais me envolvi em qualquer batida, sempre me livrando de tudo, de muita situação difícil utilizando a direção defensiva como regra principal.
   Tive evidentemente um grande mestre na auto-escola, Seu João, instrutor de primeiríssima qualidade, que muito me ensinou.
   Multas mesmo, umas poucas por estacionamento proibido, nessa cidade de poucas vagas, e um ou outro "pardal" de 60 Km, me filmando escondido por detrás de uma árvore frondosa.
  Nem me imagino portanto parando numa blitz e perdendo minha carteira por haver bebido algo além de 2 copos de cerveja, única bebida alcoólica que gosto de fato, nem imagino !
   Compreendo que tem havido muito acidente no trânsito, nem todas entretanto foram causadas por excesso de velocidade ou embriaguez ao volante, acredito que a maioria ocorreu por pura imperícia mesmo. Mas o que falta de verdade é uma lei eficaz na hora de punir cada crime, seja de que espécie for, com bebida ou não. E não assim, na base do terror...
   E me conformo menos ainda quando penso na impunidade que rola em todas as esferas do país. Políticos cometendo toda sorte de falcatruas, lesando os cofres públicos, prejudicando irremediavelmente a nação, sobretudo a massa pobre e trabalhadora que os põe lá através do voto, candidatos tão iguais e sem caráter; gente influente com filhos figurando descontraidamente nas listas dos homens mais ricos do país e quiçá do mundo. Ou até aqueles que valendo-se da cargos de confiança, enriquece da noite para o dia através de negociatas utilizando-se do dinheiro público. Corruptos e corruptores continuam por aí. E nada se faz p/ acabar com tamanha vergonha.
   Contra o cidadão comum as leis são duras, preventivas e postas em prática num relâmpago, como essa tal lei seca.
   Um verdadeiro "band-aid" justiceiro.
   Contra os poderosos protela-se, protela-se, num corporativismo medonho. Vejam como exemplo a lei da ficha limpa. Todos continuam no poder,na maior cara de pau !
   Por que não tratar com o mesmo rigor da lei seca os demais crimes, aplicando multa pesada, apreensão de documento, cassação de direito e até prisão !
   As drogas ditas ilícitas estão aí, convivendo livremente na sociedade, imensas cracolândias a céu aberto, cartéis de corruptos comprando todo mundo, todos tem seu preço, dizem nessas rodas; fomentando o tráfico de armas, celulares aos montes nos presídios, polícia inoperante...
  Alguns poucos trabalhando seriamente,sem vulto porém diante do desonesto quadro geral.
   Assaltos à luz do dia ao cidadão de bem, furtos mil, pequenas empresas, bravos comerciantes como esse meu amigo, pagando extorsivas taxas e impostos sem fim, sem segurança alguma pra trabalhar, convivendo com o medo diário e contínuo da morte nas mãos de um bandido qualquer, que se por um acaso vai preso num dia, noutro já está solto nas ruas por força de liminares, erros e brechas  no sistema judiciário.
   Por que não tratar tudo com o mesmo rigor ?
   Eh país extremamente injusto !
   E isso se estende e se aplica também ao nosso sistema previdenciário...
   Dos 23 milhões de brasileiros aposentados, a grande maioria, cerca de 70% recebe apenas o salário mínimo, ficando então a outra parcela, a privilegiada, responsável pelo rombo da previdência, numa rematada injustiça social.
   A iniciativa privada é uma furada; aposenta-se depois de 35 anos de contribuição, e com tão baixo rendimento que o jeito é continuar na ativa até o fim dos dias...
   E ouvindo ainda a desfaçatez de que o salário mínimo, o do povão, não pode subir, pois a previdência não aguenta, tá quebrada, com rombo cada vez maior.
   Por que simplesmente não se corrige os desvios absurdos, não é mesmo ?
   Ah ! A tão famosa mudança de paradigmas. Quase impossível nesse caso.
   Pensando nisso meu dia começa a estragar como se uma nuvem negra cobrisse o Sol por inteiro, colocando um tom cinza em tudo.
   Lembro-me de novo da lei seca, a única que teria que transgredir de forma consciente nessa minha vida impoluta, se quisesse ainda me divertir um pouco nesse domingo.
  Na verdade queria apenas poder ser livre, cuidadosamente livre ao tomar minhas tres cervejas ao longo do dia, só isso, não mais que isso e assim sendo, poder responder por qualquer dos meu atos se viesse a prejudicar alguém. Mas não é bem assim...
  Ninguém é detido por ser um potencial assaltante, é ?
  Pergunto-me ainda por que o sistema de saúde não se vale também de medidas preventivas, ajudando o povo a não ficar doente, seja por alcoolismo, tabagismo e outros tantos ismos, erradicando vícios, educando-o desde o início ?
   Mas não, educar não é o que importa no país, o sistema instituído precisa de dinheiro, muito dinheiro fácil, pois existem outros interesses em jogo; há então que se multar, arrecadar, arrecadar como numa colônia. E sempre haverá um legislador, olhar duro e inflexível, inflando o peito com empáfia, com aquela justificativa célebre que uma lei pra dar certo tem que doer no bolso do cidadão, do cidadão sim, que jamais reage. Só assim !
   Fico arrasado diante de tanta "sacanagem"...
   Resolvo então ficar em casa nesse belo dia de Sol, não ir a churrasco algum correndo o risco de cair numa blitz, tendo que encarar um policial cumpridor do seu dever, sorridente e simpático, mas com o bafômetro, bloco e caneta na mão, me autuando e automaticamente tirando minha carteira de habilitação, um dos raros resquícios da minha bela juventude.
  Tenho que forçosamente quebrar meu paradigma !
  Decido portanto não infringir a lei, vou ligar para o meu amigo declinando do convite, agradecendo por tudo e adiando uma vez mais nosso ansiado encontro.

Nilson Ribeiro, poeta ao acaso desde menino, fluminense de 57 anos, dos quais 42 de labuta, lidando com gente de todo quilate, fiz disso inspiração diária pra aguentar os trancos da vida.

Um comentário:

Nana disse...

Bom dia!!
Mto legal o texto de Nilson Ribeiro..Ele descreve os fatos que ocorrem em nosso cotidiano e como nos sentimos. É o qq desejaríamos gritar aos quatro ventos do país.Nilson Ribeiro foca bem o desistir da nossa liberdade de ir e vir e nos permanecer na solidão.Isso é o qq acontece, no momento, em nossa sociedade contemporânea.Infelizmente a alegria de viver e conviver uns com os outros já não existe mais.É o país do faz de conta...
Um abraço,
Ana Maria