Clarice Lispector, desenho de Ceschiatti, Paris, Jan. 1947. |
Júlio Lerner
De minha
sala até o saguão dos estúdios tenho que percorrer cerca de 150 metros. Estou
tão aturdido com a possibilidade de entrevistá-la que mal consigo me organizar
naquela curta caminhada. Talvez falar sobre “A Paixão Segundo G.H”... Ou quem
sabe sobre “A Maçã no Escuro” e “Perto do Coração Selvagem”... Vou recordando o
que Clarice escreveu. Será que li tudo? Em apenas cinco minutos consegui um
estúdio para entrevistá-la. São quatro e quinze da tarde e disponho de apenas
meia hora. Às cinco entra ao vivo o programa infantil e quinze minutos antes
terei de desocupar o estúdio. Estou correndo e antes mesmo de vê-la a pressão
do tempo começa a me massacrar. Não terei condições de preparar nada antes, nem
mesmo conversar um pouco. Não poderei sequer tentar criar um clima adequado
para a entrevista. Eu odeio a TV brasileira! Só meia hora para ouvir Clarice. O
pessoal da técnica foi novamente generoso e se empenhou para conseguir essa
brecha. Olho o relógio, não consigo me organizar, estou correndo, olho
novamente o relógio. Estou desconcertado, atinjo o saguão dos estúdios e a vejo
ali, dez metros adiante, Clarice de pé ao lado de uma amiga, perdida no meio do
vaivém dos cenários desmontados, de diversos equipamentos e de técnicos que
falam alto, no meio de um grande alvoroço.
Paro
diante dela, estou um pouco ofegante, estendo-lhe a mão e sou atravessado pelo
olhar mais desprotegido que um ser humano pode lançar a semelhante. Ela é
frágil, ela é tímida, e eu não tenho condições para explicar que o problema do
tempo elevou meus níveis de ansiedade. Clarice me apresenta Olga Borelli,
entramos e a conduzo ao centro do pequeno estúdio. Peço para que ela sente numa
poltrona de couro de tonalidade café-com-leite. Clarice segura apenas um maço
de Hollywood e uma caixa de fósforos, providencio um cinzeiro, os refletores
malditos são ligados. Clarice me olha. O olhar de Clarice me interroga, só
disponho de uma única câmera, o olhar de Clarice suplica, Olga se ajeita numa
lateral escurecida, chega Miriam, a estagiária do programa e fica encolhida e
calada, o calor está ficando insuportável e o ar-condicionado não está
ajustado, são apenas quatro e vinte, Clarice tenta me dizer alguma coisa mas
não falo com ela, preocupado em ajustar uma questão de iluminação, o hálito da
fornalha já nos atinge a todos, devemos ter agora no estúdio uns 50 ou 60
graus, maldita TV, bendita TV do terceiro mundo que me possibilita estar agora
frente a frente com ela, Clarice me olha melindrosa, assustada e seu olhar me
pede para que a tranqüilize.
“OK,
Júlio, tudo pronto”, a voz metálica vem da caixa dos alto-falantes. Peço a toda
equipe para sair, cabo man, iluminador, assistente de estúdio, agradeço.
Clarice percebe que caiu numa arapuca e já não há como voltar atrás. Peço
silêncio e depois de uns dez segundos ecoa um “gravando”.
Não
conversamos antes e disponho apenas de 23 minutos. Estou completamente
desconcertado, fico um minuto em silêncio fitando Clarice. Estou oco, vazio,
não sei o que dizer. Clarice me olha curiosa, mas vigilante, defendida. Sou o
senhor do castelo e — prepotente — guardo comigo a chave desta prisão. Ninguém
pode entrar ou sair sem meu expresso consentimento. Todos devem se submeter à
minha autoritária vontade.
Clarice Lispector, por Ramon Muniz |
Acho que
ela vai se levantar a qualquer instante e me dizer: “Chega!”. Clarice pressente que por trás de meu sorriso
aparentemente compreensivo e de minha fala suave esconde-se um ser diabólico
autodenominado “repórter” e que quer possuir sua intimidade. Seu corpo exprime
receios, ela me afasta, mas de novo me atrai, suas pernas se cruzam e se
descruzam sem parar e telegrafam que de repente ela poderá se levantar e
partir.
Clarice Lispector, de onde veio esse
Lispector?
É um
nome latino, não é? Eu perguntei a meu pai desde quando havia Lispector na
Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações anteriores. Eu suponho que o nome
foi rolando, rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e foi formando outra
coisa que parece “Lis” e “peito”, em latim. É um nome que quando escrevi meu
primeiro livro, Sérgio Milliet (eu era completamente desconhecida, é claro) diz
assim: “Essa escritora de nome desagradável, certamente um pseudônimo...”. Não
era, era meu nome mesmo.
Você chegou a conhecer o Sérgio
Milliet pessoalmente?
Nunca.
Porque eu publiquei o meu livro e fui embora do Brasil, porque eu me casei com
um diplomata brasileiro, de modo que não conheci as pessoas que escreveram
sobre mim.
Clarice, seu pai fazia o que
profissionalmente?
Representações
de firmas, coisas assim. Quando ele, na verdade, dava era para coisas do
espírito.
Há alguém na família Lispector que
chegou a escrever alguma coisa?
Eu soube
ultimamente, para minha enorme surpresa, que minha mãe escrevia. Não publicava,
mas escrevia. Eu tenho uma irmã, Elisa Lispector, que escreve romances. E tenho
outra irmã, chamada Tânia Kaufman, que escreve livros técnicos.
Você chegou a ler as coisas que sua
mãe escreveu?
Não, eu
soube há poucos meses. Soube através de uma tia: “Sabe que sua mãe fazia um
diário e escrevia poesias?” Eu fiquei boba...
Nas raras entrevistas que você tem
concedido surge, quase que necessariamente, a pergunta de como você começou a
escrever e quando?
Antes de
sete anos eu já fabulava, já inventava histórias, por exemplo, inventei uma
história que não acabava nunca. Quando comecei a ler comecei a escrever também.
Pequenas histórias.
Quando a jovem, praticamente
adolescente Clarice Lispector, descobre que realmente é a literatura aquele
campo de criação humana que mais a atrai, a jovem Clarice tem algum objetivo
específico ou apenas escrever, sem determinar um tipo de público?
Apenas
escrever.
Você poderia nos dar uma ideia do
que era a produção da adolescente Clarice Lispector?
Caótica.
Intensa. Inteiramente fora da realidade da vida.
Desse período você se lembra do nome
de alguma produção?
Bem,
escrevi várias coisas antes de publicar meu primeiro livro. Eu escrevia para
revistas — contos, jornais. Eu ia com uma timidez enorme, mas uma timidez
ousada. Eu sou tímida e ousada ao mesmo tempo. Chegava lá nas revistas e dizia:
“Eu tenho um conto, você não quer publicar?” Aí me lembro que uma vez foi o
Raimundo Magalhães Jr. que olhou, leu um pedaço, olhou para mim e disse: “Você
copiou isso de quem?” Eu disse: “De ninguém, é meu”. Ele disse: Você traduziu?”
Eu disse: “Não”. Ele disse: “Então eu vou publicar”. Era sim, era meu trabalho.
Você publicava onde?
Ah, não
me lembro... Jornais, revistas.
Clarice, a partir de qual momento
você efetivamente decidiu assumir a carreira de escritora?
Eu nunca
assumi.
Por quê?
Eu não
sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço
questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação
consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu
faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade.
A sua produção ocorre com frequência
ou você tem períodos?
Tenho
períodos de produzir intensamente e tenho períodos-hiatos em que a vida fica
intolerável.
E esses hiatos são longos?
Depende.
Podem ser longos e eu vegeto nesse período ou então, para me salvar, me lanço
logo noutra coisa, por exemplo, eu acabei uma novela, estou meio oca, então
estou fazendo histórias para crianças.
Como você explica a Clarice
Lispector voltada para a literatura infantil?
Começou
com meu filho quando ele tinha seis anos, seis ou cinco anos, me ordenando que
escrevesse uma história para ele. E eu escrevi. Depois guardei e nunca mais
liguei. Até que me pediram um livro infantil. Eu disse que não tinha. Eu tinha
inteiramente esquecido daquilo. Era tão pouco literatura para mim, eu não
queria usar isso para publicar. Era para o meu filho. Aí lembrei: "Bom,
tenho, sim”. Então foi publicado. Foram publicados três livros de literatura
infantil e estou fazendo o quarto agora.
É mais difícil você se comunicar com
o adulto ou com a criança?
Quando
me comunico com criança é fácil porque sou muito maternal. Quando me comunico
com o adulto, na verdade, estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma.
O adulto
é triste e solitário.
E a criança?
A
criança tem a fantasia solta.
A partir de que momento, de acordo
com a escritora, o ser humano vai se transformando em triste e solitário?
Ah, isso
é segredo. Desculpe, não vou responder. A qualquer momento da vida, basta um
choque um pouco inesperado e isso acontece. Mas eu não sou solitária. Tenho
muitos amigos. E só estou triste hoje porque estou cansada. No geral sou
alegre.
Normalmente o contato do jovem
estudante com você revela que tipo de preocupação?
Revela
coisas surpreendentes, que eles estão na minha.
O que significa “estar na sua”?
É que eu
penso às vezes que eu estou isolada e quando eu vejo estou tendo
universitários, gente muito jovem, que está completamente ao meu lado e é
gratificante, não é?
Nós ouvimos com frequência que as
novas gerações pouco leem no Brasil. Você confirma isso?
Bem, os
universitários são obrigados a ler porque impõem a eles a obra. Agora não estou
a par dos outros.
De seus trabalhos qual aquele que
você acredita que mais atinja o público jovem?
Depende.
Por exemplo, o meu livro “A Paixão Segundo G.H”, um professor de português do
Pedro II veio até minha casa e disse que leu quatro vezes e ainda não sabe do
que se trata. No dia seguinte uma jovem de 17 anos, universitária, disse que
este é o livro de cabeceira dela. Quer dizer, não dá para entender.
E isso acontece em relação a outros
trabalhos seus?
Também
em relação ao outros trabalhos, ou toca ou não toca. Suponho que não entender
não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato. Tanto
que o professor de português e literatura, que deveria ser o mais apto a me
entender, não me entendia. E a moça de 17 anos lia e relia o livro, não é? O
que é um alívio.
Antes de
nos encontrarmos aqui no estúdio você me dizia que está começando um novo
trabalho agora, uma novela...
Não, eu
acabei a novela.
Que novela é essa, Clarice?
É a
história de uma moça que só comia cachorro-quente. A história é de uma
inocência pisada, de uma miséria anônima...
O
cenário dessa novela é...
É o Rio
de Janeiro... Mas o personagem é nordestino, é de Alagoas...
Onde você foi buscar a inspiração,
dentro de si mesma?
Eu morei
no Recife, me criei no Nordeste. E depois, no Rio de Janeiro tem uma feira de
nordestinos no Campo de São Cristóvão e uma vez eu fui lá. E peguei o ar meio
perdido do nordestino no Rio de Janeiro. Daí começou a nascer a ideia. Depois
eu fui a uma cartomante e ela disse várias coisas boas que iam acontecer e
imaginei, quando tomei o táxi de volta, que seria muito engraçado se um táxi me
atropelasse e eu morresse depois de ter ouvido todas aquelas coisas boas. Então
a partir daí foi nascendo também a trama da história.
Qual o nome da heroína da novela?
Não
quero dizer. É segredo.
E o nome da novela, você poderia
revelar?
Treze
nomes, treze títulos.
Rilke, em seu livro “Cartas a um
Jovem Poeta”, respondendo a uma das missivas, pergunta a um jovem que pretendia
se tornar escritor: se você não pudesse mais escrever, você morreria? A mesma pergunta eu transfiro a
você.
Eu acho
que, quando não escrevo estou morta.
Esse período?
É muito
duro, esse período entre um trabalho e outro, e ao mesmo tempo é necessário
para haver uma espécie de esvaziamento para poder nascer alguma outra coisa, se
nascer. É tudo tão incerto...
Clarice, mas como é que você
escreve? Existe algum horário específico?
Em geral
de manhã cedo. As minhas horas preferidas são as da manhã.
Você acorda a que horas?
Quatro e
meia, cinco horas. Fico fumando, tomando café, sozinha sem nenhuma
interferência. Quando estou escrevendo alguma coisa eu anoto a qualquer hora do
dia ou da noite, coisas que me vêm. O que se chama inspiração, não é? Agora
quando estou no ato de concatenar as inspirações, aí sou obrigada a trabalhar
diariamente.
Você se considera uma escritora popular?
Não.
Por qual razão?
Me
chamam de hermética. Como é que eu posso ser popular sendo hermética?
E como você vê esta observação
"hermética"?
Eu me
compreendo. De modo que não sou hermética para mim. Bom, tem um conto meu que
não compreendo muito bem...
Que conto?
“O ovo e
a galinha”.
Entre seus diversos trabalhos existe
um filho predileto. Qual aquele que você vê com maior carinho até hoje?
“O ovo e
a galinha”, que é um mistério para mim. Uma coisa que eu escrevi sobre um
bandido, um criminoso chamado Mineirinho, que morreu com três balas quando uma
só bastava. E que era devoto de São Jorge e que tinha uma namorada.
Sobre esse seu trabalho em torno de
Mineirinho, qual o enfoque você deu?
Eu não
me lembro muito bem, já faz bastante tempo. Há qualquer coisa assim como “o
primeiro tiro me espanta, o segundo tiro não sei o que, o terceiro tiro...” Eu
me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse
sido o crime dele uma bala bastava, o resto era vontade de matar. Era
prepotência.
Em que
medida o trabalho de Clarice Lispector no caso específico de Mineirinho pode
alterar a ordem das coisas?
Não
altera em nada. Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere
qualquer coisa.
No seu entender, qual é o papel do
escritor brasileiro hoje?
De falar
o menos possível
Eventualmente.
Quais aqueles que você acredita
serem os mais significativos?
Eu
prefiro não citar nomes porque eu vou esquecer alguns e vai ofender, vai ferir.
Assim, eu não cito ninguém.
Você discute muito com a Clarice
Lispector escritora?
Não. Eu
me deixo ser...
E convivem em paz?
Ás vezes
não em paz, mas...
Normalmente, que tipo de problema a
Clarice Lispector escritora traz a você?
Às vezes
o fato de me considerar escritora me isola.
Por qual razão?
Me põe
um rótulo.
E você acredita que as pessoas olham
para você através desse rótulo?
Às vezes
através desse rótulo. Tudo o que eu digo, a maior bobagem, é considerada como
uma coisa linda ou uma coisa boba. É por isso que não ligo muito para essa
coisa de ser escritora e dar entrevistas e tudo.
Você acredita que uma pessoa vá a
uma livraria comprar especificamente um livro de Clarice Lispector?
Parece
que isso acontece. Eu sei porque às vezes me telefonam e me perguntam em que
livraria encontram meu livro. Então eu sei que tem pessoas que vão procurar
exatamente o meu livro. É que no fundo eu escrevo muito simples, sabe?
Será que as coisas simples hoje são
recebidas de maneira complicada?
Talvez,
talvez... Eu escrevo simples. Eu não enfeito.
Na sua formação como escritora quais
aqueles autores que você sente que realmente lhe influenciaram, que marcaram?
Eu não
sei realmente porque misturei tudo. Eu lia romance para mocinhas, livro
cor-de-rosa, misturado com Dostoiévski. Eu escolhia os livros pelos títulos e
não pelos autores. Misturei tudo. Fui ler, aos treze anos, Hermann Hesse, [o
romance] “O Lobo da Estepe”, e foi um choque. Aí comecei a escrever um conto
que não acabava nunca mais. Terminei rasgando e jogando fora.
Isso ainda acontece de você produzir
alguma coisa e rasgar?
Eu deixo
de lado... Não, eu rasgo sim.
É produto de reflexão ou de uma
emoção?
Raiva,
um pouco de raiva.
De quem?
De mim
mesma.
Por que, Clarice?
Sei lá,
estou meio cansada.
Do quê?
De mim
mesma.
Mas você não renasce e se renova a
cada trabalho novo?
Bom,
agora eu morri. Mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou
morta. Estou falando do meu túmulo.
Entrevista concedida
ao jornalista Júlio Lerner, em 1 de fevereiro de 1977, para o programa
“Panorama”, da TV Cultura, de São Paulo.
Fonte: Jornal Opção - Clássicos Literários.
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