A coerência é o
último refúgio dos que tem pouca fantasia. Quem disse isso foi Oscar Wilde e eu
concordo. Sempre tive tendência à fidelidade quer nas amizades, nos velhos
hábitos de freqüentar durante anos a mesma cabeleireira, manter os filhos
sempre nos mesmos colégios, no amor. Com o passar dos anos aprendi que a
ousadia na medida certa, romper com alguns padrões, às vezes é uma saída.
Sempre tive a mania de presentear, não grandes presentes, mas pequenos mimos.
Era incapaz de chegar na casa de alguém de mãos abanando, Isto está sendo
difícil de romper. Até a minha irmã já me falou que esse meu comportamento de
presentear a todos deve algumas vezes pesar no bolso. Vou tentar me regenerar.
Outro defeito meu é assumir responsabilidades que não são minhas. Sem dúvida,
esse é o pior. Sem querer, algumas vezes me torno responsável por famílias
inteiras. Uma época dei carona para nossa empregada e quando cheguei em casa
dela fiquei pasma com a promiscuidade. Uma sala pequena, tendo um lençol como divisória.
Nesta sala vivia uma família de sete pessoas. Perguntei a ela quanto seria
necessário para fazer os quartos. Ela me perguntou por que. Respondi que se ela
concordasse eu compraria o material e ela poderia me pagar mensalmente,
descontaríamos de seu salário. Dia seguinte ela trouxe uma lista enorme: ferro,
areia, cimento, tijolos, etc. Em dois finais de semana de mutirão o marido dela
ergueu a casa. A casa erguida, ela prontamente chegou com outra lista. Eram
portas, janelas, vidros, forro e telha. Aí eu empaquei: ela ainda não havia
pago a primeira lista e trouxera a segunda. A casa era de dois andares, com
laje, segundo ela me explicou. Foi aí que eu entendi onde gastaram tanto
cimento. Expliquei a ela que a primeira compra não estava paga e eu não poderia
arcar com mais outra de valor superior e que o salário dela estava praticamente
todo comprometido. Nem é preciso dizer que perdi a empregada. Se uma amiga
recebia um convite para uma festa e desejava comprar roupa, eu emprestava com o
maior prazer, porém não tenho hábito de pedir nada emprestado. Posso até
repetir as roupas, mas pedir emprestado não. E foi uma época em que fui
trabalhar num bazar beneficente que uma pessoa muito querida e de alto poder
aquisitivo me pedira para comprar roupas para os seus. Expliquei a ela que nem
sempre as doações eram de roupas novas; a maioria das vezes eram roupas bem
usadas. Ela me pediu que comprasse assim mesmo e me deu uma lista. Eram
jaquetas de lã e de brim, calças de brim, camisas masculinas em bom estado. Minhas
colegas de trabalho separavam e eu fazia a entrega. Minha amiga jamais foi ao
bazar. Durante quatro anos, religiosamente, na mudança de estação, ela me
trazia a lista e eu lhe entregava as sacolas cheias para fazer a escolha. Uma
ocasião até bolsa feminina e cintos masculinos usados ela comprou. Esse arranjo
nos possibilitou trabalhar mais em paz, pois o dinheiro arrecado era para
alimentar setenta boquinhas entre zero e quatorze anos. Outra ocasião meu
marido recebeu de presente uma camisa e um cinto que ficaram pequenos. Ele
esqueceu de fazer a troca e eu comentei com a minha amiga que me pediu para
vender para ela. Como nossa amizade é de muitos anos eu lhe dei a camisa e o
cinto, e ela saiu feliz da vida da minha casa. Certa tarde ela me ligou para
fazermos um lanche no shopping com sua filha e sua nora. Durante o lanche a
filha se queixou que estava amuada com tantos convites para confirmar presença
porém não estava a fim de gastar no vestuário. A nora se queixou que não
aceitava convite dos parentes porque não possuía um guarda roupa à altura.
Olhei para as duas jovens senhoras e pensei. Elas estão naquela idade que a
mulher já não é tão jovenzinha que qualquer coisa faz efeito. Nesta fase da
vida, a mulher quer mais é se fazer bonita para as outras amigas. Passando numa
loja de calçados, a moça perguntou o que a sogra achava de um par de sapatos.
Como eu comprei um par de sapatos igual e não pude usar, ofereci para a moça
que aceitou e ainda me disse que era muito triste não ter mais a sua mãe, pois
era ela quem lhe dava todo o vestuário. Em casa, eu estava com todos os
armários lotados. Minhas meninas foram morar fora e não levaram nada de roupas
de festas. Quem viaja para estudar não se preocupa com detalhes, querem é
roupas práticas. Minha filha havia me pedido várias vezes: mãe leva para o teu
bazar, doe tudo por favor. O meu armário é só de roupas clássicas e a nora da
minha amiga falou que não possuía roupas nem para ir ao fórum, pois ela é
advogada. Ofereci as roupas minhas e das meninas. Elas aceitaram. No dia
marcado, o marido da advogada passou em minha casa e levou parte das sacolas.
Por volta das vinte e duas horas a moça me ligou. Estava emocionada e comentou
cada item e o estado das roupas. Algumas peças em papel de seda e os calçados todos
em saquinhos de tecido. Me agradeceu profundamente. Me senti feliz. Aquela
sensação boa de fazer o outro feliz. Na segunda etapa minha amiga me ligou para
saber o dia e a hora em que deveria vir apanhar as outras sacolas e me
perguntou de um vestido preto que eu prometera para sua nora. Era um vestido
novo, que nunca usei, pois sofri um acidente e não pude ir à festa. No dia e
hora marcados o senhor marido da minha amiga, veio até a nossa casa apanhar as
sacolas. Na noite seguinte minha amiga me ligou e perguntou se estava tudo bem.
Respondi que sim e ela me perguntou se por acaso mandei algo para a casa dela
que não era para mandar, pois ela estava com visitas quando o marido chegou com
as sacolas. A amiga dela ficou muito curiosa e impressionada com o vestuário e
disse a ela que se alguma roupa não fosse do gosto de minha amiga ou das
meninas, a amiga dela gostaria de ficar para as filhas e que, inclusive,
separou algumas peças para eventual negociação. E depois minha amiga soltou
essa pérola: que o senhor seu marido estava muito humilhado por ter sido
obrigado ir apanhar roupas usadas naquela de quem foi seu colega de trabalho e
perguntou mais, será que eles não vão nos pedir algum favor em troca? Ouvi tudo
o que a minha amiga quis dizer e lhe afirmei que sentia muita compaixão pelo
senhor marido dela por desconhecer o que é uma amizade verdadeira. Me desculpei
com ela, por ter tido a pretensão de fazer alguém feliz. Pois bem, agora no
início do inverno ela me ligou para perguntar, candidamente, se eu já fiz a
seleção de peças de inverno para doar. E foi aí que me lembrei do conselho de
um amigo que é médico. Ele me disse o seguinte, jamais doe qualquer coisa, seja
para empregada, seja para conhecido, ou para amigo. Entre doar e vender, venda
por um preço simbólico, porque tem gente que não sabe receber e sente-se
humilhado. Pensei, usar roupas usadas do bazar pode. Não rompi com minha amiga,
nem sequer lhe respondi a altura, por dois motivos. Um que ela não está bem de
saúde e outro porque ela me deu uma grande lição. Agora da minha casa, não sai
mais um prego que não seja para a igreja, porém continuo fiel à amizade dela,
apenas penso que ela foi incoerente e deve ter muita fantasia.
Restaurandora
de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi
classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros
publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais
domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura,
cinema, e a paixão de escrever.
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