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segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Incoerência - Nadia Foes



A coerência é o último refúgio dos que tem pouca fantasia. Quem disse isso foi Oscar Wilde e eu concordo. Sempre tive tendência à fidelidade quer nas amizades, nos velhos hábitos de freqüentar durante anos a mesma cabeleireira, manter os filhos sempre nos mesmos colégios, no amor. Com o passar dos anos aprendi que a ousadia na medida certa, romper com alguns padrões, às vezes é uma saída. Sempre tive a mania de presentear, não grandes presentes, mas pequenos mimos. Era incapaz de chegar na casa de alguém de mãos abanando, Isto está sendo difícil de romper. Até a minha irmã já me falou que esse meu comportamento de presentear a todos deve algumas vezes pesar no bolso. Vou tentar me regenerar. Outro defeito meu é assumir responsabilidades que não são minhas. Sem dúvida, esse é o pior. Sem querer, algumas vezes me torno responsável por famílias inteiras. Uma época dei carona para nossa empregada e quando cheguei em casa dela fiquei pasma com a promiscuidade. Uma sala pequena, tendo um lençol como divisória. Nesta sala vivia uma família de sete pessoas. Perguntei a ela quanto seria necessário para fazer os quartos. Ela me perguntou por que. Respondi que se ela concordasse eu compraria o material e ela poderia me pagar mensalmente, descontaríamos de seu salário. Dia seguinte ela trouxe uma lista enorme: ferro, areia, cimento, tijolos, etc. Em dois finais de semana de mutirão o marido dela ergueu a casa. A casa erguida, ela prontamente chegou com outra lista. Eram portas, janelas, vidros, forro e telha. Aí eu empaquei: ela ainda não havia pago a primeira lista e trouxera a segunda. A casa era de dois andares, com laje, segundo ela me explicou. Foi aí que eu entendi onde gastaram tanto cimento. Expliquei a ela que a primeira compra não estava paga e eu não poderia arcar com mais outra de valor superior e que o salário dela estava praticamente todo comprometido. Nem é preciso dizer que perdi a empregada. Se uma amiga recebia um convite para uma festa e desejava comprar roupa, eu emprestava com o maior prazer, porém não tenho hábito de pedir nada emprestado. Posso até repetir as roupas, mas pedir emprestado não. E foi uma época em que fui trabalhar num bazar beneficente que uma pessoa muito querida e de alto poder aquisitivo me pedira para comprar roupas para os seus. Expliquei a ela que nem sempre as doações eram de roupas novas; a maioria das vezes eram roupas bem usadas. Ela me pediu que comprasse assim mesmo e me deu uma lista. Eram jaquetas de lã e de brim, calças de brim, camisas masculinas em bom estado. Minhas colegas de trabalho separavam e eu fazia a entrega. Minha amiga jamais foi ao bazar. Durante quatro anos, religiosamente, na mudança de estação, ela me trazia a lista e eu lhe entregava as sacolas cheias para fazer a escolha. Uma ocasião até bolsa feminina e cintos masculinos usados ela comprou. Esse arranjo nos possibilitou trabalhar mais em paz, pois o dinheiro arrecado era para alimentar setenta boquinhas entre zero e quatorze anos. Outra ocasião meu marido recebeu de presente uma camisa e um cinto que ficaram pequenos. Ele esqueceu de fazer a troca e eu comentei com a minha amiga que me pediu para vender para ela. Como nossa amizade é de muitos anos eu lhe dei a camisa e o cinto, e ela saiu feliz da vida da minha casa. Certa tarde ela me ligou para fazermos um lanche no shopping com sua filha e sua nora. Durante o lanche a filha se queixou que estava amuada com tantos convites para confirmar presença porém não estava a fim de gastar no vestuário. A nora se queixou que não aceitava convite dos parentes porque não possuía um guarda roupa à altura. Olhei para as duas jovens senhoras e pensei. Elas estão naquela idade que a mulher já não é tão jovenzinha que qualquer coisa faz efeito. Nesta fase da vida, a mulher quer mais é se fazer bonita para as outras amigas. Passando numa loja de calçados, a moça perguntou o que a sogra achava de um par de sapatos. Como eu comprei um par de sapatos igual e não pude usar, ofereci para a moça que aceitou e ainda me disse que era muito triste não ter mais a sua mãe, pois era ela quem lhe dava todo o vestuário. Em casa, eu estava com todos os armários lotados. Minhas meninas foram morar fora e não levaram nada de roupas de festas. Quem viaja para estudar não se preocupa com detalhes, querem é roupas práticas. Minha filha havia me pedido várias vezes: mãe leva para o teu bazar, doe tudo por favor. O meu armário é só de roupas clássicas e a nora da minha amiga falou que não possuía roupas nem para ir ao fórum, pois ela é advogada. Ofereci as roupas minhas e das meninas. Elas aceitaram. No dia marcado, o marido da advogada passou em minha casa e levou parte das sacolas. Por volta das vinte e duas horas a moça me ligou. Estava emocionada e comentou cada item e o estado das roupas. Algumas peças em papel de seda e os calçados todos em saquinhos de tecido. Me agradeceu profundamente. Me senti feliz. Aquela sensação boa de fazer o outro feliz. Na segunda etapa minha amiga me ligou para saber o dia e a hora em que deveria vir apanhar as outras sacolas e me perguntou de um vestido preto que eu prometera para sua nora. Era um vestido novo, que nunca usei, pois sofri um acidente e não pude ir à festa. No dia e hora marcados o senhor marido da minha amiga, veio até a nossa casa apanhar as sacolas. Na noite seguinte minha amiga me ligou e perguntou se estava tudo bem. Respondi que sim e ela me perguntou se por acaso mandei algo para a casa dela que não era para mandar, pois ela estava com visitas quando o marido chegou com as sacolas. A amiga dela ficou muito curiosa e impressionada com o vestuário e disse a ela que se alguma roupa não fosse do gosto de minha amiga ou das meninas, a amiga dela gostaria de ficar para as filhas e que, inclusive, separou algumas peças para eventual negociação. E depois minha amiga soltou essa pérola: que o senhor seu marido estava muito humilhado por ter sido obrigado ir apanhar roupas usadas naquela de quem foi seu colega de trabalho e perguntou mais, será que eles não vão nos pedir algum favor em troca? Ouvi tudo o que a minha amiga quis dizer e lhe afirmei que sentia muita compaixão pelo senhor marido dela por desconhecer o que é uma amizade verdadeira. Me desculpei com ela, por ter tido a pretensão de fazer alguém feliz. Pois bem, agora no início do inverno ela me ligou para perguntar, candidamente, se eu já fiz a seleção de peças de inverno para doar. E foi aí que me lembrei do conselho de um amigo que é médico. Ele me disse o seguinte, jamais doe qualquer coisa, seja para empregada, seja para conhecido, ou para amigo. Entre doar e vender, venda por um preço simbólico, porque tem gente que não sabe receber e sente-se humilhado. Pensei, usar roupas usadas do bazar pode. Não rompi com minha amiga, nem sequer lhe respondi a altura, por dois motivos. Um que ela não está bem de saúde e outro porque ela me deu uma grande lição. Agora da minha casa, não sai mais um prego que não seja para a igreja, porém continuo fiel à amizade dela, apenas penso que ela foi incoerente e deve ter muita fantasia.


Restaurandora de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura, cinema, e a paixão de escrever.

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