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quinta-feira, 12 de julho de 2012

Cartas do meu tempo: Sobre o que se escreve, por Aglaé Gil

Eu não quero escrever uma história de amor. Fico olhando para a tela do computador e para o teclado como se conseguisse olhar para dentro de mim, da minha alma, e insisto: eu não quero escrever uma história de amor.
No entanto, sobre o que escreve uma mulher se sua própria existência é, do início ao fim, um tatear à procura de letras e palavras e gestos que descrevam uma linha extensa e intensa com a vibração de força e luz do amor?
Olho para o tempo atrás de mim como quem olha para um caminho percorrido com vagar e vejo mil histórias intercaladas. São como rios e seus afluentes que, invariavelmente, desaguam no grande mar da vida. Então, tudo se explica e se retrata tão nitidamente, que me parece muito fácil escrever sobre qualquer outra coisa que não seja absurdamente banal. Porque, na verdade, o amor se abre diante do que é banal para se mostrar inteiro, completo, superior às mazelas que se criam ao redor e que são mensageiras de bobagens insípidas, como o que se convém, hoje, chamar de “amor”.

Hoje, quando uma criança de poucas semanas segurou minha mão, ou melhor, meu dedo indicador, e sentiu-se segura o suficiente para parar de chorar e adormecer, eu tive, mais uma vez, a noção exata do que é se dar sem reservas e oferecer, com esse gesto, a possibilidade de o outro confiar, parar de temer, reconhecer diante de si alguém que está apenas oferecendo calor e ternura. A mãozinha quente e macia vacilou por alguns minutos ao sentir a pele de minha mão, desconhecida ao toque dela, porém igualmente desejosa de ser útil, de oferecer segurança e bem-estar. Em questão e minutos ela soube: poderia confiar e se deixar cuidar, poderia abandonar-se a mais um sono calmo e quente. Agarrou-se com ternura, porém firmemente, ao meu dedo e senti que seus pequenos músculos relaxavam e ela adormecia com a expressão digna e tranquila dos bebês saudáveis e prontos para uma longa estrada a percorrer.
Reaprendi ali que é muito simples atender ao chamado do sentimento desinteressado e iluminado que liga as pessoas tão-somente porque são semelhantes. O outro não precisa ser um inimigo. É um ser semelhante. E ponto. Não precisa ser um irmão invocado pelos exageros de uma pseudo-fé que a nada que é diferente aceita. Não precisa ser objeto de uma paixão desenfreada e a razão de viver de mais ninguém. É uma pessoa. Este fato deveria nos bastar para respeitarmos e, simplesmente, amarmos.
Seria muito melhor se nossa religião, a de todos nós, estivesse voltada para o nosso semelhante. Porque o sagrado nos acompanha na mesma medida em que o profano nos invade e, com nossos erros tantos, com as nossas imperfeições, forma esse mosaico raro que somos nós.
Um dia, muito tempo atrás, alguém me surpreendeu em minha meninice com palavras de que jamais me esqueci: “não olhe para o céu para procurar por Deus...o que é Dele vem de lá, mas está por aqui, aqui embaixo mesmo, em tudo, principalmente nos iguais a nós. Procure por Deus nos olhos de uma pessoa.Ame Deus amando as pessoas e ensinando-lhes a amar você.”
Desde então comecei a me prender ao que os grandes mestres que passaram por este mundo tentaram ensinar. Tão simples são os ensinamentos...assim como é simples um lírio no campo, vestido de festa todos os seus dias, porque todos os dias, na verdade, são uma festa, se levarmos em conta quem somos, de onde viemos e que todos temos essa mesma origem e esse mesmo destino. Todos os dias têm o mesmo sentido e nos murmuram: “para adiante...sempre à frente”
É. Eu não quero escrever uma história de amor. Mas, dificilmente eu conseguirei escrever algo que não seja uma história de amor. Porque cada um de nós está impregnado e formado por páginas e páginas de histórias que merecem ser escritas e gritam por isso. E, sendo histórias vividas por pessoas, não há como não serem histórias de amor.
Porque não existe neste mundo quem não viva por amor, ainda que a própria vida seja um fiapo, um frágil roçar de asas de uma borboleta, o correr alegre e breve de uma bolha de sabão...uma folha amarelada caindo sobre outras pelos gramados ou calçadas, a nuvem formando desenhos preguiçosos no céu...
Pois é assim. Por mais efêmera que possam considerar a própria vida, as pessoas vivem movidas pelo amor. O que as difere é o rumo que escolhem dar a esse sentimento.


Aglaé Gil,  de Curitiba – com formação em revisão e produção de textos; pesquisadora de História e Literatura; aprendiz de viver; poeta;mãe; cidadã. [não necessariamente nessa ordem]

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