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terça-feira, 24 de julho de 2012

Falando Sozinho - Martha Medeiros

Estava caminhando  pelas ruas do Rio de Janeiro quando percebi um fenômeno que não é nenhuma nova tendência, ao contrário, é hábito antigo, mas que só agora venho prestando verdadeira atenção. Refiro-me às pessoas que falam sozinhas. Não só falam, aliás. Resmungam, xingam, discursam. Passei a me interessar pelo fato quando, de uns anos pra cá, minhas filhas deram para me alertar: mãe, tu estás falando sozinha. Era só o que me faltava, meninas, estou aqui em frente ao computador, lendo um texto aos sussurros, só isso. E quando acontece na cozinha, mãe? E no corredor do apartamento? Ah, vocês andam ouvindo coisas. Mas sucumbi às evidências: falo sozinha. Um pouquinho em casa, e infinitamente mais quando estou caminhando pelas avenidas e parques da cidade, onde crio diálogos inteiros na minha cabeça. Sem que eu perceba, meu pensamento sai pela boca. Não raro, gesticulo também. Tudo com a maior discrição – espero. Quando estou dirigindo meu carro, a mesma coisa. Canto quando há música, e falo quando há silêncio. Tenho certeza de que falo apenas com meus botões, falo quieta, mas já fui flagrada em delito: “Mãe, outra vez?”.O que eu falo, no entanto, ninguém escuta direito. Não chego àquele nível de maluquice que acomete andarilhos que falam sozinhos num volume tão audível que a gente chega a se perguntar se estariam mesmo sozinhos. Estarão? Desvendado o mistério. Estamos falando com ex-maridos, com chefes insuportáveis, com amigos que não entenderam nossas boas intenções, com personagens criados pela nossa imaginação, com pessoas que já não estão nesse mundo, com o William Bonner, com Jesus, com fantasmas, principalmente com estes, os que nos assombram, vivos ou mortos, desconhecidos ou famosos. Há sempre um interlocutor invisível que precisa ouvir umas poucas e boas, ou nos atender num confessionário ambulante, na calçada mesmo em meio às buzinas e veículos que passam tão ligeiros que nem nos percebem. Só os porteiros dos prédios que reparam e se divertem. O ator Caio Blatt disse em entrevista recente que fala muito sozinho, e que considera isso uma espécie de psicodrama, dando à nossa ansiedade um nome mais refinado. Mas está certo, e psicodrama , sim, concordo em defesa de todos os tagarelas solitários. Estamos ensaiando uma discussão uma argumentação, um desabafo, que depois pode nem acontecer, ocaso já ficou resolvido ali mesmo, enquanto se cruzava a faixa de pedestres. Falar sozinho é um ato de generosidade, antes de tudo. Vá saber o estrago que causaríamos se falássemos pra valer, olho no olho, tudo aquilo que mantemos guardado, todo o palavreado da raiva, do rancor e do desassossego que fica confinado dentro. Melhor soltar as frase ao vento.
Zero Hora

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