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segunda-feira, 16 de julho de 2012

O pensador - Nadia Foes


Meu nome é Dom Pipo. Sou um cocker dourado, daqueles que, dizem as más línguas, que na tentativa de aprimorar a raça para que ficassem mais belos, criaram a minha cor. Alguns nas primeiras experiências tornaram-se violentos e com o hábito de morder, e foram sacrificados , mas ninguém soube nunca explicar o que aconteceu. Mas eu não mordo e tenho cara de pensador grego, como já dizia o Bardo. E como todo pensador, sou observador. Se minha humana está triste, sento na cadeira e converso com ela. Noto que ela está meio preocupada e digo preocupada porque quando ela entra em transe e fica com aquele ar de quem está fora de órbita, se falam com ela custa a responder. Parece que o cérebro dela fica condensado. Hoje ela amanheceu assim. Às vezes isso dura horas, mas há ocasiões em dura muito tempo. Ela está pressentindo que algo de novo está para acontecer. Algo que vai trazer muitas mudanças no seu mundo, pois justo agora que ela estava conseguindo arrumar a sua desarrumação do seu interior, e lá vai ela partir para novas experiências; praticamente começar de novo. Pois ao que tudo indica, ouvi dizer que a casa será fechada por uma temporada e iremos partir, rumo ao desconhecido, e isso vai dando uma insegurança danada. Ela gosta de mar e pelo jeito só vai ver rio. Ela gosta de acordar com a passarinhada. E as plantas? E os gatos? Eles vão ter que ficar. Está certo que alguém virá tomar conta dos gatos e das plantas, mas e da parte dela que vai ficar, quem vai cuidar? Ela vai mas deixa para trás uma parte da sua história que está aqui encravada, na rocha onde foi construída a casa. E o outro pedaço vai com ela. Que destino! Quando ela pensava que tudo estava resolvido, vem uma mudança de vida. Ela não sabe que sina é esta de andar de um lado para o outro. Passou a vida com sina de passarinho arrumando o ninho. Os pássaros criaram asas e saíram em revoada pelo mundo e os sonhos dela foram ficando para depois. Até porque nunca perguntaram para ela. E os seus anseios particulares? Dia destes o marido vendo umas fotos de um amigo em um museu de Paris disse a ela: imagine só como ele deve ter se emocionado diante da grandiosidade das obras de arte, pois nós que quase não entendemos de arte, perdemos o fôlego quando vimos. Eu vi que ela olhou para ele e fez aquela cara de quem vai entrar em transe. E ficou pensando. Depois de muito pensar disse: Dom Pipo veja só, fiz curso de história da arte com um dos melhores professores do sul, estudei escultura, pintura, ourivesaria, sou restauradora de bens móveis e ele nem sabe disso. Aí foi a minha vez de franzir a testa e ficar pensando, mas que ingratidão, pois até na casa de uma tal de Lucrecia Borgia, ela foi e lá ela lavou o rosto e bebeu a água da fonte. Disseram que as propriedades da tal água são milagrosas para a beleza e que a tal de Lucrecia já fazia isso. Mas ela disse, não acredite, Dom Pipo, em tudo que você ouvir, pois dizem que a Boca da Verdade, em Roma, come a mão de quem mente.É o que dizem. Mas não comeu a mão do marido dela. Era para ele ter voltado maneta de lá se isso fosse verdade. Houve uma época em que ela quis muito ir para aquela terra onde o povo fala com o muro, só para aprender a falar com as paredes, mas agora ela não quer ir mais não, pois agora ela fala com os caninos, felinos e até com os vegetais. E assim ela leva a vida ou é levada por ela. Mas como tudo está escrito nas estrelas, lá vamos nós. A Domitila e o Kadu também vão embarcar nesta aventura. Mas veja se pode, recomeçar tudo outra vez! Olho para ela e ela continua em transe. E eu fico pensando, não seria melhor ela fazer como eu faço: se não tenho o que fazer arrumo um osso para enterrar, se não tenho osso, eu durmo. Ela que durma pois amanhã será outro dia. E se as linhas não forem paralelas, vamos continuas nas sinuosas, de qualquer jeito. Mas tem muitas coisas que ocupam a mente dela, mas nem tudo ela me conta. Mas ela sabe que temos muito em comum, pois ela quase perdeu o pé esquerdo e eu o direito. E é por isso que estamos juntos, mas isso é uma outra história que um dia ela vai contar. Espero que o transe passe logo logo, pois tenho medo de que em um desses transe, ela crie assas, saia voando como passarinho e não ache mais o ninho. Como já disse, meu nome é Dom Pipo, sou um cocker dourado, de dois anos, e tenho cara de intelectual, como dizia o Bardo.

Ninguém abre a sua porta
Para ver o que aconteceu:
Saímos de braços dados
A noite escura mais eu

Ela não sabe o meu rumo
Eu não lhe pergunto o seu
Não posso perder mais nada
Se o que houve já se perdeu

Vou pelo braço da noite
Levando tudo o que é meu
A dor que os homens me deram
E a canção que Deus me deu
(Cecília Meireles)
Restaurandora de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura, cinema, e a paixão de escrever.

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