sábado, 2 de fevereiro de 2013
Cartas do meu tempo: Membrana do olhar - Aglaé Gil
A vida em suspenso em companhia daqueles dias vazios, que tinham o peso cinza das penumbras interiores.
Era como se não houvesse manhã ou noite.
Tudo permanecia como em um final de tarde - no exato momento lusco-fusco do dia.
Nada acontecia. A vida não respirava. Ficava dormitando envolta numa membrana fina, quase transparente. Quase.
Tinha um peso acinzentado na cor.
A música do vinil tocava repetidamente, na vitrola mais velha que a janela por onde se podia ver os dias se arrastarem e a vida pedir por socorro: um pulmão artificial, um coração vermelho-sangue - bomba vigorosa, saudável.
Tocava e tocava. A música. Não havia voz. Eram instrumentos de sopro e mesmo assim soavam como um lamento. O que aumentava a sensação de torpor. Havia um trecho ligeiramente arranhado, bem no final - por isso a agulha voltava e retomava a canção. E ela se deitava pelo chão, tão casada quanto os móveis e os tapetes que não recebiam os raios de sol e já nem sabiam desde quando.
Seguia assim, a vida. A vida que nem era mais tanto, mas que ainda era algo pelo que valia a pena soluçar esperança e xingar impotências.Ah...valia. Quem sabe não bastasse lavar os vidros das janelas e deixar fluir pela limpeza o brilho de dias melhores. Quem sabe sim. Quem sabe não.
Da cozinha vinha o ruído de uma gota. A gota que gotejava tão repetitiva quando a música do disco riscado, os dias de pintura acinzentada e o eterno lusco-fusco que estava dentro,tão dentro quanto o coração vermelho-quase-rosa - bomba cansada, motor barulhento, cansado e aflito.
Feito os olhos que já não podiam enxergar muito mais além da catarata que assuntava, ranzinza, chamando-o de velho a cada piscar de olhos.
Aglaé Gil, de Curitiba – com formação em revisão e produção de textos; pesquisadora de História e Literatura; aprendiz de viver; poeta;mãe; cidadã. [não necessariamente nessa ordem]
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ORACY
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19:54
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