‘Se você quer um voo tranquilo, pega um Boeing”, ensina-me um ogro amigo. “Mas se você quer fazer pirueta, pega um teco-teco.” Naturalmente, ele não está falando de aviação acrobática e sim de mulher. A vida não me forneceu base estatística para confirmar ou refutar tal tirada. Entendo, porém, o que ela sugere: a dona bonita demais acha que não precisa se esforçar muito na cama porque, ora, é bonita demais, e isso há de bastar; já a comum, ou até a feiosa, sabe que precisa suar a camisa, dar tudo de si.
Meditando sobre essa questão transcendental, concluí que o Rio de Janeiro é um Boeing. A cidade acha que ser assim tão bela já a torna maravilhosa, como alardeia a velha marchinha. Os serviços públicos são terríveis, os privados não ficam atrás, nada funciona muito bem, obras são inauguradas às pressas, obras são malfeitas para serem refeitas, lá vai verba e... Ei, relaxe, cara. Você está na cidade mais bonita da face da Terra. Para que se preocupar se cariocas e turistas estão sendo bem tratados? Se a vista lá do Cristo é espetacular, por que não fazer vista grossa à bandalheira cá embaixo?
Vivo praticamente entre Laranjeiras e Cosme Velho. Esta, aliás, é a única zona eleitoral na qual o prefeito Eduardo Paes perdeu para Marcelo Freixo. Vejo quase todos os dias a rapina que ocorre aos pés do Corcovado. Outro dia, passava de táxi em frente à estação do bondinho. O motorista lamentou o caos e desejou ter alguma autoridade. Uma semana bastaria, disse-me, para tirar de circulação os taxistas pilantras, ordenar o desembarque dos passageiros dos ônibus turísticos, afastar os camelôs mais agressivos.
Silenciosamente concordei com ele. Uma semana de trabalho talvez fosse o bastante. “Choques de ordem” na área costumam durar apenas um dia. Por coincidência, o dia seguinte à publicação de uma reportagem-denúncia no jornal. Mas o mundo gira, e o táxi roda... Quando emergimos do Rebouças, na Lagoa, o motorista anunciou: “Esta é a segunda vista mais bonita do mundo.” Então, o dever do jornalista é perguntar: “E qual é a primeira vista mais bonita?” O senhor ao volante nem piscou: “O Pão de Açúcar, a Urca e a Enseada de Botafogo, vistos do monumento a Estácio de Sá.”
Concordei com ele. Essas são as duas vistas mais bonitas da cidade, mais do que a do Corcovado ou de qualquer uma das praias oceânicas. De volta ao silêncio, contudo, perguntei-me se ele já teria saído do Brasil ou viajado pelo país. Há tantas outras belas vistas neste mundão besta... Sim, talvez ele tivesse morado em Paris ou no Nordeste.
Bem, isso não importava. Gostei do jeito que disse “a vista mais bonita do mundo”. Ele não mentia. A cidade é o seu mundo. A frase traduz a paixão do carioca pelo Rio. Sou carioca, filho de cariocas, mas sei que este enamoramento perpétuo — inclusive em tempos recentes, quando a cidade era a Geni do Brasil, e as outras tacavam baldes de bosta nela — tem um lado negativo. Tendemos a ser autocondescendentes, facilmente engabelados, sopa no mel para os políticos. Também nisso somos o retrato do país, do papo de que “deus é brasileiro” (talvez seja maranhense) e tudo se resolverá.
Daí termos de ouvir que o governo estadual vai “doar” R$ 5 mil a 300 famílias afetadas pelo temporal em Xerém. Doar? Ora, o Estado vai tão-somente lhes restituir parte do dinheiro sonegado por décadas de incompetência, burocracia e roubalheira. O risco de inundação na área era conhecido ao menos desde 1996, tempo em que o governador era Marcello Alencar. O que ele e seus sucessores fizeram? E na Serra? Espero que com mais brasileiros viajando pela primeira vez para conhecer não só as lojas, mas também os serviços essenciais no exterior, com a crescente chegada de imigrantes europeus em busca de emprego qualificado e com as cobranças daí resultantes, nossos padrões de cidadania sejam aprimorados a médio prazo.
Mesmo porque consciente ou inconscientemente as pessoas tendem a escolher seus destinos de férias pelo Índice de Desenvolvimento Humano. Eu também. Só cogito viajar para países que tenham IDH igual ou superior ao nosso. Ou seja, ou vou conhecer um pouco mais o próprio Brasil ou vou para um dos 84 países à nossa frente no ranking da ONU. Não é pouco chão. Certo, perco a herança cultural e espiritual da Índia (134ª posição) ou a natureza exuberante da República Democrática do Congo (187ª posição, a lanterninha), mas não fico preso à Noruega (a primeirona) ou à Itália (24ª).
Dá para pensar em um dia ir à Bulgária (55ª posição) ou voltar ao Chile e à Argentina (44ª e 45º, respectivamente). A rigor, é possível ir até ao Equador, primeiro país antes do Brasil no ranking. Na América do Sul, os brasileiros são sacaneados como uma espécie de cidadãos de Itu: para nós, aqui tudo é “o maior isso, o maior aquilo”.
Não o IDH, estatística combinada de expectativa de vida, educação e PIB
Publicado por O Globo - Arthur Dapieve
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