Faz exatamente vinte anos que uma noite deixei a Galeria Menescal com as luzes das lojas já acesas, resisti a comer um quibe no árabe, quase em frente à portaria de meu consultório, e caminhei para a garagem. O dia havia sido pesado. Das oito da manhã até às sete da noite eu havia atendido nove pacientes - ansiosos, deprimidos, delirantes. Um pulo em casa para almoçar rápido e ver minha filha chegar do colégio. Rotina que obedecia sempre como aquela entre tantas outras mulheres que seguram as rédeas de uma casa sem marido. Estava exausta, peguei um sanduíche na cozinha e comecei a ler um romance que havia deixado há mais de uma semana pela metade. Ler ficção era um luxo naquela época.
Absorta, não vi minha filha chegar e dizer: “Ganhei duas entradas para assistir amanhã “Blue Jeans”, uma peça muito legal com Alexandre Frota, quem me arranjou foi a Silvia, que é amiga da Paula Thomaz, aquela minha colega de classe que namora um tal de Guilherme que trabalha na peça.” Minha filha estudava, então, no colégio São Paulo. Engoli em seco, tinha lido sobre a estreia da peça e sabia que era um espetáculo com o único objetivo de mostrar os atributos fisicos de um grupo de garotos metido a machões e de passado duvidoso. Disse que ia pensar no assunto.
No dia seguinte, me imbuí de toda a força que uma mãe pode ter ao argumentar com uma adolescente e afirmei que minha filha não iria. Armou-se uma confusão. À tarde, depois de aula, Silvia apareceu em minha casa pedindo, quase implorando, que permitisse que minha filha a acompanhasse. Fui dura, inflexível, e ainda argumentei que aquele lugar não era para ambas e não ia lhes acrescentar nada, além de ser uma peça de baixo nível. A discussão continuou dia afora. Desgastada, nervosa, cansada, acabei dando um ultimato e minha filha não foi.
No final do ano, tinha acabado a festa de Natal e voltei do consultório bem tarde como de hábito. Encontrei minha filha e Silvia sentadas no sofá em frente à televisão em estado de choque. O tal Guilherme e a colega Paula Thomaz haviam matado Daniela Perez com dezesseis facadas na noite anterior. Minha filha pálida e perplexa não falava nada, Silvia chorava intensamente. Ouvi a noticia no Jornal Nacional sem ter o que dizer, eu mesma tentava organizar meus pensamentos frente àquela loucura, imaginei o desespero da mãe da moça, da violência, da frieza do ato e a falta de sentido que não conseguia encontrar. A autora da novela deveria estar no abismo literalmente sem corpo e alma. Saí muda. De repente, ouvi a porta de meu quarto abrir e Silvia entrar enxugando as lágrimas, com o olhar aterrorizado de uma adolescente totalmente perdida e afogada num fato que lhe escapava a compreensão. Então ela me perguntou: “Tia, como é que você sabia?”
Germana de Lamare é jornalista e psiquiatra
Publicado por Anna Ramalho
Um comentário:
Ter meu texto publicado no seu blog é um privilégio, obrigada, gostaria de dizer para quem o leu, que vinte anos depois Silvia está casada em Natal e tem uma filha de oito anos, e minha filha mora no Rio e tem quatro filhos. Essa crõnica foi dedicada a elas.
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