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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Ela. Elis. - Por Aglaé Gil



    Eu me lembro onde estava em 19 de janeiro de 1982. Eu havia marcado uma visita a uma fábrica de refrigerantes que ficava próxima à casa onde minha irmã morava, desde que se casara, um ano antes. Foi o que fiz pela manhã e, depois, fui almoçar na casa dela, com minha mãe. Estávamos as três, sentadas, conversando, e o rádio estava ligado, como sempre deixávamos. Um costume que perdemos, talvez porque a maioria das rádios já não toque as músicas que amamos.
    De repente, silenciamos. Ouvimos, entre uma palavra e outra que dizíamos, a notícia da morte de Elis Regina.
    Foi um silêncio de espanto. Pesado, furioso.
    Eu me lembro muito bem da sensação.
    Elis havia sido, ao longo de toda uma geração que gente como ela ‘puxava’ para seguir em frente, uma das maiores, se não a maior, revelação da música popular brasileira.
    A princípio, era apenas a moça de gestos abruptos e exagerados, como exagerado era o seu penteado quando começou a cantar depois que chegou ao Rio de Janeiro, em 1964, justamente no dia do Golpe de Estado que deu início aos tantos anos de Ditadura no Brasil, dona de uma voz que não conhecia limites.
    Aos poucos, foi crescendo em desempenho para, na balança da sensibilidade, equiparar-se a sua enorme voz. A interpretação de Elis, em qualquer canção, passou a ser uma espécie de sonho de qualquer compositor que desejasse ver sua música tomar forma, ganhar corpo e sustentar-se a partir de um cantor e tornar-se alma.
    Sim, porque Elis não cantava, simplesmente. Nem mesmo interpretava, simplesmente. Elis sangrava.
    Ela tomava a canção para si e a injetava em suas veias até que chegasse ao mais íntimo de sua alma. Ela vivia cada nota, cada letra de cada palavra. E soprava tudo como um pássaro ferido, que dá seu último tom, o mais belo, antes de definhar e deitar-se sobre a esperança de ser, de novo, liberdade.
    Elis acabou sendo, desde que no Rio, portanto mais próxima de tudo o que fervilhava à beira do abismo da Ditadura, a voz que entoava os hinos de um Brasil que saiu da Bossa Nova para entrar nas canções que discursavam pela liberdade de expressão, em um Rio de Janeiro que era, então, um palanque só.
    Assim, ela trouxe à tona, a música de gente até aquele momento desconhecida da mesma forma que enfatizou como ninguém a obra dos já consagrados.
    Olhos pequenos, como todo o seu corpo, aliás, sorrisos de gengivas enormes, alma de água e vento, Elis foi mais que um furacão. Elis foi tsunami, quando o termo não era tão usado como hoje é. Ao mesmo tempo, foi a doçura que fazia valer a pena toda canção.
    E então, um belo dia, ela se foi. Voltou. É...voltou para um lugar onde se canta e se ri e se ama com mais naturalidade do que a que ela encontrou por aqui.
    E toda a música que pôde pegar, levou consigo, em seu peito de mil sons.
    Naquele dia, naquele exato dia, 19 de janeiro de 1982, a nossa música começou a ficar mais pobre.
    Porque ela, Elis, é um desses pássaros raros, de asas douradas que brilham quando refletem o sol. Ou as estrelas.
    E me ocorre, agora, uma frase de João Bosco,  da canção dele e de Aldir Blanc, que a voz da gaúcha tornou famosa: “...a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar...”
    Trinta anos depois, ela, Elis, ainda canta, forte e em bom tom, por este Brasil velho, sem porteiras, mas que hoje vive sob uma ditadura diferente, para a qual podemos dar muitos nomes. Escolhamos um.


Aglaé Gil, 51 anos, de Curitiba – com formação em revisão e produção de textos; pesquisadora de História e Literatura; aprendiz de viver; poeta;mãe; cidadã. [não necessariamente nessa ordem]

Um comentário:

Nana disse...

Boa noite!!
Saudade de um tempo qq não voltará jamais, mas pra quem é artista, cantou e encantou como Elis,não tem como esquecê - la...Jamais!!Ela permanecerá eternamente em nossos corações..
Gostei mto do texto de Aglaé Gil..
Um abraço,
Ana Maria