Siga o Blog do Oracy

sábado, 28 de janeiro de 2012

Sobre o prazer de ser quem é - por Aglaé Gil

Nosso maior talento talvez esteja sendo deixado para trás, enquanto corremos com o mundo e, muitas vezes, à frente dele, adiante, como se não nos restasse nem mesmo um minuto de tolerância.
    Entretanto, se por um momento paramos e deixamos de lado o olhar que vai além e, vislumbra o todo, sem deter-se a minúcias do dia a dia e das pessoas que o constroem; se, por um simples momento nos dedicamos a reduzir nosso campo de visão e valorizar a imagem que está ali, ao alcance de nossos olhos ávidos e de nossas mãos ressequidas de carinho, nesse momento podemos ver um mundo se desenhando, limpo e valoroso.
    Dia desses, em conversa com uma amiga querida, ela me contou um fato ocorrido durante uma viagem de trem [ou ônibus? Creio que não importa o meio de locomoção, neste caso] que ela fazia até sua cidade, depois de um dia de trabalho e numa fase em que havia inúmeras coisas a serem resolvidas, enfim, um momento de fácil dispersão, quando nos voltamos para dentro de nós e ficamos envolvidos em nossos pensamentos tentando encontrar uma solução para isto e aquilo, o tempo todo maquinando e fumaçando possibilidades.
    Aconteceu que, ao lado dela, sentou-se uma senhorinha, uma mulher de idade já avançada. Minha amiga seguia, com seus fones de ouvido, mergulhada em seus pensamentos para os quais encontrou uma trilha sonora perfeita e por meio da qual procurava relaxar ao mesmo tempo em que percorria suas alternativas. A certa altura, sentiu um cheirinho bom de empadas, voltou-se ligeiramente e notou que a senhorinha estava, faceira e sossegada, fazendo uma boquinha, comendo uma empada.
    Até então, tudo dentro de absoluta ‘normalidade’. Até que minha amiga notou alguma coisa, de cor rosa, no colo da senhorinha, sob um guardanapo de papel.  Os olhos curiosos foram diretamente ao foco da atenção. Acontece que o objeto róseo era, nada mais nada menos, que as próteses da senhorinha que, para poder saborear melhor sua deliciosa empada, optara por retirá-las e assim, evitar sujá-las com a massa difícil do salgado que costuma aderir aos dentes, o que dificulta a limpeza imediata, portanto impossível naquela circunstância.
    Uma coisa simples. Pode até ser considerada nojenta, claro, para a maioria das pessoas. No entanto, minha amiga, naquele momento, conseguiu parar com o redemoinho de pensamentos pessoais e dar-se conta de algo imensamente simples e verdadeiro: à medida que nossa vida toma rumo ao lugar de onde já se sabe que o mais importante é o bem-estar, a liberdade e a independência de gestos e atos [o que, aliás, nos torna únicos], nós temos a tendência de não nos importarmos mais [e cada vez menos] com as coisas que nos deixavam transtornados, principalmente com o dragão atroz do ‘o que vão pensar de mim?’
    Talvez quem esteja lendo pense que o exemplo é radical e que não podemos nos dar ao luxo de termos atitudes tão libertas de cuidados em relação aos que nos cercam. Mas, ainda que seja assim e ainda que seja apenas um exemplo, o fato é que não deveríamos mesmo estar à mercê da estranheza que sentimos diante de coisas que podem ser muito inerentes às mazelas humanas, já que nosso corpo tende à deteriorização lenta, porém certa, ao longo dos anos.
    Afinal, o que é mais importante? Comer a empada ou me preocupar com o que vão pensar ao meu respeito?
    Nem tanto ao céu nem tanto a terra?
    Sim, pode ser, mas, talvez pudéssemos pensar mais nisso. Talvez estejamos sendo, ao longo de nossa caminhada aqui pelo ‘planeta azul’, muito superficiais e ligados a padrões que não acrescentam coisa alguma, num sentido mais amplo e essencial para nós.
    Quem sabe, ao nos preocuparmos com o que pensam de nossas atitudes, nossos gestos e opiniões, estejamos até mesmo deixando de ser mais humanos, mais ligados uns aos outros e aprendendo, juntos, a comermos com liberdade, uma boa empada.

___________________________..


[obrigada, Isabel Gonçalves,  por compartilhar seu dia a dia: tudo é sempre tão valioso!]



Aglaé Gil, 51 anos, de Curitiba – com formação em revisão e produção de textos; pesquisadora de História e Literatura; aprendiz de viver; poeta;mãe; cidadã. [não necessariamente nessa ordem]

3 comentários:

Nana disse...

Boa tarde!!
Texto qq enfoca o nosso cotidiano e nos deixa uma gde reflexão sobre o prazer de ser quem é....Sensacional!!Realmente, a vida tem qq ser vivida,sentida em todas as suas nuances...Amei a velhinha comendo empada..ela para o mundo à sua volta,"tô nem aí"....
Um abraço,
Ana maria

Teresa Santos disse...

Bonito, texto Aglaé. E realmente, quando atingimos uma certa idade tudo fica muito mais fácil. Até comer empadinhas sem a dentadura.

AGLAÉ GIL DA SILVA disse...

Nana e Teresa*
Obrigada!
E não é?
:-)