Nosso maior talento talvez esteja sendo deixado para trás,
enquanto corremos com o mundo e, muitas vezes, à frente dele, adiante,
como se não nos restasse nem mesmo um minuto de tolerância.
Entretanto, se por um momento paramos e deixamos de lado o olhar que
vai além e, vislumbra o todo, sem deter-se a minúcias do dia a dia e
das pessoas que o constroem; se, por um simples momento nos dedicamos a
reduzir nosso campo de visão e valorizar a imagem que está ali, ao
alcance de nossos olhos ávidos e de nossas mãos ressequidas de carinho,
nesse momento podemos ver um mundo se desenhando, limpo e valoroso.
Dia desses, em conversa com uma amiga querida, ela me contou um fato
ocorrido durante uma viagem de trem [ou ônibus? Creio que não importa o
meio de locomoção, neste caso] que ela fazia até sua cidade, depois de
um dia de trabalho e numa fase em que havia inúmeras coisas a serem
resolvidas, enfim, um momento de fácil dispersão, quando nos voltamos
para dentro de nós e ficamos envolvidos em nossos pensamentos tentando
encontrar uma solução para isto e aquilo, o tempo todo maquinando e
fumaçando possibilidades.
Aconteceu que, ao lado dela, sentou-se uma senhorinha, uma mulher de
idade já avançada. Minha amiga seguia, com seus fones de ouvido,
mergulhada em seus pensamentos para os quais encontrou uma trilha sonora
perfeita e por meio da qual procurava relaxar ao mesmo tempo em que
percorria suas alternativas. A certa altura, sentiu um cheirinho bom de
empadas, voltou-se ligeiramente e notou que a senhorinha estava, faceira
e sossegada, fazendo uma boquinha, comendo uma empada.
Até então, tudo dentro de absoluta ‘normalidade’. Até que minha
amiga notou alguma coisa, de cor rosa, no colo da senhorinha, sob um
guardanapo de papel. Os olhos curiosos foram diretamente ao foco da
atenção. Acontece que o objeto róseo era, nada mais nada menos, que as
próteses da senhorinha que, para poder saborear melhor sua deliciosa
empada, optara por retirá-las e assim, evitar sujá-las com a massa
difícil do salgado que costuma aderir aos dentes, o que dificulta a
limpeza imediata, portanto impossível naquela circunstância.
Uma coisa simples. Pode até ser considerada nojenta, claro, para a
maioria das pessoas. No entanto, minha amiga, naquele momento, conseguiu
parar com o redemoinho de pensamentos pessoais e dar-se conta de algo
imensamente simples e verdadeiro: à medida que nossa vida toma rumo ao
lugar de onde já se sabe que o mais importante é o bem-estar, a
liberdade e a independência de gestos e atos [o que, aliás, nos torna
únicos], nós temos a tendência de não nos importarmos mais [e cada vez
menos] com as coisas que nos deixavam transtornados, principalmente com o
dragão atroz do ‘o que vão pensar de mim?’
Talvez quem esteja lendo pense que o exemplo é radical e que não
podemos nos dar ao luxo de termos atitudes tão libertas de cuidados em
relação aos que nos cercam. Mas, ainda que seja assim e ainda que seja
apenas um exemplo, o fato é que não deveríamos mesmo estar à mercê da
estranheza que sentimos diante de coisas que podem ser muito inerentes
às mazelas humanas, já que nosso corpo tende à deteriorização lenta,
porém certa, ao longo dos anos.
Afinal, o que é mais importante? Comer a empada ou me preocupar com o que vão pensar ao meu respeito?
Nem tanto ao céu nem tanto a terra?
Sim, pode ser, mas, talvez pudéssemos pensar mais nisso. Talvez
estejamos sendo, ao longo de nossa caminhada aqui pelo ‘planeta azul’,
muito superficiais e ligados a padrões que não acrescentam coisa alguma,
num sentido mais amplo e essencial para nós.
Quem sabe, ao nos preocuparmos com o que pensam de nossas atitudes,
nossos gestos e opiniões, estejamos até mesmo deixando de ser mais
humanos, mais ligados uns aos outros e aprendendo, juntos, a comermos
com liberdade, uma boa empada.
___________________________..
[obrigada, Isabel Gonçalves, por compartilhar seu dia a dia: tudo é sempre tão valioso!]
Aglaé Gil, 51 anos, de Curitiba – com formação em revisão e produção de
textos; pesquisadora de História e Literatura; aprendiz de viver;
poeta;mãe; cidadã. [não necessariamente nessa ordem]
3 comentários:
Boa tarde!!
Texto qq enfoca o nosso cotidiano e nos deixa uma gde reflexão sobre o prazer de ser quem é....Sensacional!!Realmente, a vida tem qq ser vivida,sentida em todas as suas nuances...Amei a velhinha comendo empada..ela para o mundo à sua volta,"tô nem aí"....
Um abraço,
Ana maria
Bonito, texto Aglaé. E realmente, quando atingimos uma certa idade tudo fica muito mais fácil. Até comer empadinhas sem a dentadura.
Nana e Teresa*
Obrigada!
E não é?
:-)
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