Eu estava às voltas com a casa nova e sem mão de obra. Foi
um Deus nos acuda. Duas filhas e entre elas uma diferença de idade de dez anos.
Uma na faculdade e outra no colegial. A casa ainda com eletricistas para fazer
as instalações dos lustres, invadindo todos os cômodos da casa, seis cachorros,
um era epilético – esse precisava ser vigiado e medicado. Entre caixas e
caixas, eu não sabia o que fazer. Para arrematar, meu marido ficou fazendo
terrorismo doméstico, me chamando de desorganizada. Segundo ele, eu estava mais
preocupada era com a decoração da casa nova e que a Tê era de opinião que eu
deveria me concentrar na cozinha pois eu deveria dar conta das refeições
familiares. Só não entendi bem, na época, porque a Tê estava tão preocupada em
me ver na cozinha. Se estava preocupada porque não vinha ela mesma cozinhar.
Para o caso dela e sua adorável família. Tê era mulher de várias facetas, ela
se ocupava do chefe e eu era a legítima que ainda desconhecia o enredo. Foi
neste caos doméstico e no auge do desespero que recorri a uma agência de
ajudantes do lar. A primeira experiência foi frustrante, a pessoa que veio era
incapaz. A segunda, mais ou menos, não me agradou. A terceira chamava-se Arina.
Nunca soube a sua idade, penso que estava entre 45 e 50 anos. Era de cor parda,
cabelos bem tratados, sempre presos. Arina era calma, o que me ajudava muito.
Quando a casa ficou em ordem e tudo se ajeitou, eu costumava levar Arina para
fazer faxina em nossa casa de praia. Ela era muito observadora e costumava me
dizer o seguinte: casa de praia é muito bom para os filhos, mas péssimo para o
casal. Marido muito solto é comum largar suas mulheres o verão inteiro sozinhas
e ficarem até mais tarde no trabalho. Na opinião dela, a casa de praia era mais
um depósito de família para eles gozarem de liberdade e libertinagem. Bom, ela
sabia o que estava dizendo. Algumas vezes, eu separava cortinas da nossa casa
para reformar e levar para a casa de praia e Alina prontamente se oferecia para
levar para casa dela e fazer os ajustes necessários. Ela era educadíssima,
tinha um certo ar de elegância. Dos meus vestidos usados, ela aproveitava tudo
e tudo em suas mãos se transformava. Certa ocasião, ela apareceu com uma sacola
muito bonita que costurou com o tecido de uma saia que lhe dei. Algumas vezes
até me dava algumas idéias. E fui me afeiçoando a ela. Certo dia minha filha
fez uma pergunta a respeito de determinada cidade de Portugal. Eu parei para
pensar e Arina já estava respondendo a pergunta da minha filha com detalhes. E
foi nesse dia já meio folgada pois seu trabalho terminara, e ela com tempo
ocioso, entre uma xícara de café e outra, me contou que conhecia Portugal muito
bem, onde esteve várias vezes. Conhecia a Espanha e achava Barcelona uma cidade
linda. Me disse que em sua passagem pela Espanha aproveitou para comprar roupas
de cama e toalhas de mesa bordadas. Ela até me trouxe de presente umas
toalhinhas bordadas, muito delicadas. E também uns paninhos da Ilha da Madeira.
Pois Arina era de gente muito humilde, seus pais eram pessoas modestas. Ela não
pode estudar e foi trabalhar em casa dos outros, até que ela teve um estalo:
resolveu abrir uma barraca de comidinhas na praia. Era ótima cozinheira e muito
conhecida. Entre seus fregueses um senhor português, muito educado, acabou
cativando a Arina. Arina fechou sua barraca e o português abriu um restaurante
para ela. Mas, na realidade, o espaço era dele, o capital era dele e Arina era
dele. Ele era separado e sua mulher e filhos viviam em outra cidade. Arina
conta que foi muito feliz com ele. Ele lhe proporcionou luxo, conforto e a
educou. A mulher dele morreu e ele não casou com Arina porque estavam muito bem
como estavam vivendo, até que ele adoeceu. Ficou muito mal. Arina cuidou dele,
ele se recuperou e seus filhos foram chamados, conheceram Arina e aceitaram
muito bem a situação do casal. O que Arina não contava era com as complicações
de saúde dele. Novamente ele ficou mal, ela deixou a cozinha para cuidar dele e
os negócios foram se complicando e ela resolveu vender o restaurante e tratar
da saúde dele. Três anos depois ele foi hospitalizado em estado gravíssimo.
Arina foi ao banco, não pode mexer no dinheiro e aí começou a via-crucis.
Recorreu aos filhos dele que vivam em boa situação financeira. Os filhos
chegaram, no dia seguinte o pai morreu no hospital. Na confusão de transferir o
corpo para a capela mortuária, Arina foi solicitada a ir em casa apanhar roupas
para vestir o morto. Ela conta que foi em casa, apanhou as roupas e voltou
algumas horas depois. Ao chegar no hospital foi impedida de ver o morto. Ela
passou pela tesouraria para ver como ia pagar as despesas, mas as despesas já
estavam pagas. A conselho da mulher de um dos filhos do finado, Arina foi até
em casa se arrumar, descansar um pouco para o velório. A moça ficou de avisar a
hora que o corpo seria liberado para ser velado. Só que ninguém ligou. Arina
ficou angustiada e voltou ao hospital e constatou, horrorizada, que os filhos
levaram o corpo do pai para lugar ignorado. Arina tinha duas saídas, ou procurava
os seus direitos ou juntava suas coisas e partia. Ela juntou tudo que era de
uso pessoal, vendeu as jóias que tinha, mudou de Estado, veio morar no sul. Com
o dinheiro arrecadado com a venda de suas jóias ela comprou uma casinha
modesta, modestíssima e foi viver de sua aposentadoria de cozinheira. E para
engordar o porquinho, fazendo frente às despesas, ela trabalhava como ajudante
do lar, pois suas pernas já não agüentavam mais pilotar um fogão. Lhe
perguntei: porque você não foi atrás de seus direitos? Ela me respondeu, até
consultei um advogado que foi falar com os herdeiros, porém eles alegaram que
eu era apenas uma cozinheira do pai dele e para provar o contrário ela teria
que passar por mais humilhações como apresentar testemunhas, provar que ela viajava
com ele como marido e mulher e etc, etc. Ela chegou à seguinte conclusão: nem o
portuga desejou fazer algo por ela, porque não legalizou a situação do casal.
Único desejo da Arina era descobrir onde ele estava sepultado para ir até ao
seu túmulo e dizer algumas verdades para o homem que se disse apaixonado um
dia.
Nota do autor: Nunca vi roubarem o defunto. Arina foi
espoliada. Um certo senso de decência fundamental é concedido ao homem na hora
de nascer.
Restaurandora
de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi
classificada em concurso internacional em contos e crônicas, Três livros
publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais
domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura,
cinema, e a paixão de escrever.
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