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terça-feira, 29 de maio de 2012

Arina, por Nadia Foes


Eu estava às voltas com a casa nova e sem mão de obra. Foi um Deus nos acuda. Duas filhas e entre elas uma diferença de idade de dez anos. Uma na faculdade e outra no colegial. A casa ainda com eletricistas para fazer as instalações dos lustres, invadindo todos os cômodos da casa, seis cachorros, um era epilético – esse precisava ser vigiado e medicado. Entre caixas e caixas, eu não sabia o que fazer. Para arrematar, meu marido ficou fazendo terrorismo doméstico, me chamando de desorganizada. Segundo ele, eu estava mais preocupada era com a decoração da casa nova e que a Tê era de opinião que eu deveria me concentrar na cozinha pois eu deveria dar conta das refeições familiares. Só não entendi bem, na época, porque a Tê estava tão preocupada em me ver na cozinha. Se estava preocupada porque não vinha ela mesma cozinhar. Para o caso dela e sua adorável família. Tê era mulher de várias facetas, ela se ocupava do chefe e eu era a legítima que ainda desconhecia o enredo. Foi neste caos doméstico e no auge do desespero que recorri a uma agência de ajudantes do lar. A primeira experiência foi frustrante, a pessoa que veio era incapaz. A segunda, mais ou menos, não me agradou. A terceira chamava-se Arina. Nunca soube a sua idade, penso que estava entre 45 e 50 anos. Era de cor parda, cabelos bem tratados, sempre presos. Arina era calma, o que me ajudava muito. Quando a casa ficou em ordem e tudo se ajeitou, eu costumava levar Arina para fazer faxina em nossa casa de praia. Ela era muito observadora e costumava me dizer o seguinte: casa de praia é muito bom para os filhos, mas péssimo para o casal. Marido muito solto é comum largar suas mulheres o verão inteiro sozinhas e ficarem até mais tarde no trabalho. Na opinião dela, a casa de praia era mais um depósito de família para eles gozarem de liberdade e libertinagem. Bom, ela sabia o que estava dizendo. Algumas vezes, eu separava cortinas da nossa casa para reformar e levar para a casa de praia e Alina prontamente se oferecia para levar para casa dela e fazer os ajustes necessários. Ela era educadíssima, tinha um certo ar de elegância. Dos meus vestidos usados, ela aproveitava tudo e tudo em suas mãos se transformava. Certa ocasião, ela apareceu com uma sacola muito bonita que costurou com o tecido de uma saia que lhe dei. Algumas vezes até me dava algumas idéias. E fui me afeiçoando a ela. Certo dia minha filha fez uma pergunta a respeito de determinada cidade de Portugal. Eu parei para pensar e Arina já estava respondendo a pergunta da minha filha com detalhes. E foi nesse dia já meio folgada pois seu trabalho terminara, e ela com tempo ocioso, entre uma xícara de café e outra, me contou que conhecia Portugal muito bem, onde esteve várias vezes. Conhecia a Espanha e achava Barcelona uma cidade linda. Me disse que em sua passagem pela Espanha aproveitou para comprar roupas de cama e toalhas de mesa bordadas. Ela até me trouxe de presente umas toalhinhas bordadas, muito delicadas. E também uns paninhos da Ilha da Madeira. Pois Arina era de gente muito humilde, seus pais eram pessoas modestas. Ela não pode estudar e foi trabalhar em casa dos outros, até que ela teve um estalo: resolveu abrir uma barraca de comidinhas na praia. Era ótima cozinheira e muito conhecida. Entre seus fregueses um senhor português, muito educado, acabou cativando a Arina. Arina fechou sua barraca e o português abriu um restaurante para ela. Mas, na realidade, o espaço era dele, o capital era dele e Arina era dele. Ele era separado e sua mulher e filhos viviam em outra cidade. Arina conta que foi muito feliz com ele. Ele lhe proporcionou luxo, conforto e a educou. A mulher dele morreu e ele não casou com Arina porque estavam muito bem como estavam vivendo, até que ele adoeceu. Ficou muito mal. Arina cuidou dele, ele se recuperou e seus filhos foram chamados, conheceram Arina e aceitaram muito bem a situação do casal. O que Arina não contava era com as complicações de saúde dele. Novamente ele ficou mal, ela deixou a cozinha para cuidar dele e os negócios foram se complicando e ela resolveu vender o restaurante e tratar da saúde dele. Três anos depois ele foi hospitalizado em estado gravíssimo. Arina foi ao banco, não pode mexer no dinheiro e aí começou a via-crucis. Recorreu aos filhos dele que vivam em boa situação financeira. Os filhos chegaram, no dia seguinte o pai morreu no hospital. Na confusão de transferir o corpo para a capela mortuária, Arina foi solicitada a ir em casa apanhar roupas para vestir o morto. Ela conta que foi em casa, apanhou as roupas e voltou algumas horas depois. Ao chegar no hospital foi impedida de ver o morto. Ela passou pela tesouraria para ver como ia pagar as despesas, mas as despesas já estavam pagas. A conselho da mulher de um dos filhos do finado, Arina foi até em casa se arrumar, descansar um pouco para o velório. A moça ficou de avisar a hora que o corpo seria liberado para ser velado. Só que ninguém ligou. Arina ficou angustiada e voltou ao hospital e constatou, horrorizada, que os filhos levaram o corpo do pai para lugar ignorado. Arina tinha duas saídas, ou procurava os seus direitos ou juntava suas coisas e partia. Ela juntou tudo que era de uso pessoal, vendeu as jóias que tinha, mudou de Estado, veio morar no sul. Com o dinheiro arrecadado com a venda de suas jóias ela comprou uma casinha modesta, modestíssima e foi viver de sua aposentadoria de cozinheira. E para engordar o porquinho, fazendo frente às despesas, ela trabalhava como ajudante do lar, pois suas pernas já não agüentavam mais pilotar um fogão. Lhe perguntei: porque você não foi atrás de seus direitos? Ela me respondeu, até consultei um advogado que foi falar com os herdeiros, porém eles alegaram que eu era apenas uma cozinheira do pai dele e para provar o contrário ela teria que passar por mais humilhações como apresentar testemunhas, provar que ela viajava com ele como marido e mulher e etc, etc. Ela chegou à seguinte conclusão: nem o portuga desejou fazer algo por ela, porque não legalizou a situação do casal. Único desejo da Arina era descobrir onde ele estava sepultado para ir até ao seu túmulo e dizer algumas verdades para o homem que se disse apaixonado um dia.

Nota do autor: Nunca vi roubarem o defunto. Arina foi espoliada. Um certo senso de decência fundamental é concedido ao homem na hora de nascer.

Restaurandora de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi classificada em concurso internacional em contos e crônicas, Três livros publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura, cinema, e a paixão de escrever.


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