Pela estrada afora eu vou
bem sozinha levar estes doces para a vovozinha, ela mora longe e o caminho é
deserto e o Lobo Mau passeia aqui por perto.
São as meninas brincando de roda que ela está recostada, cansada. Vovó,
vovó, vovó!!! Ela levanta-se de um salto para atender o chamado das netinhas.
Linda, meio ruivinha, de olhos claros e pele clarinha. Ao todo são quatro
meninas brincando de roda. A netinha, loirinha de olhos escuros e cabelos
cacheados, também está lá, mas quem faz a bagunça é a ruivinha. Da janela ela
acena e grita: saiam do sol, já para sombra! E ela volta para o seu descanso
sorrindo: são suas netas, sangue do seu sangue, que alegria! Vieram para
perpetuar a sua família! E pensa: como será que as duas amiguinhas moreninhas
de cabelos escorridos, um dia, não muito distante, vão encarar os fatos de que
os familiares? Ou melhor a tragédia! A mãe das meninas moreninhas de cabelos
lisos e escorridos é amiga de infância da filha dela que passou muitas
temporadas de férias na casa de praia da família como convidada da filha. Não
parece, mas já se passaram dez anos, será? A mãe da moça é uma médica muito
conceituada e o pai, um rico comerciante. Uma família muito estimada nos meios
sociais, até acontecer a tragédia familiar. Eram dois irmãos com idades
próximas, estudaram no mesmo colégio religioso. Era o tipo de família exemplar.
Quando o mais velho casou com a moça muito bonitinha, frágil, aparentemente, de
olhos escuros, e tiveram duas meninas, a sogra não viu com bons olhos o casamento
do filho. Logo em seguida casou o caçula em quem ela sempre apostou todas as
fichas. Casou com uma moça de outra cidade e o casal teve dois filhos homens. E
a vida foi seguindo... A família administrava os negócios, mas logo o pai
adoeceu e faleceu, e a velha senhora passou a ocupar o lugar que lhe coube nos
negócios de família e sempre colocando um filho contra o outro. Como gostava de
uma querela! A nora médica não se preocupava muito, pois tinha mais o que
fazer: com duas meninas pequenas, mais a casa, o consultório e as noites de
plantão no hospital, não lhe sobrou tempo sequer para notar o quanto aquela
família, por conta da velha senhora, vinha se esfacelando. E a correria era
grande. Logo as meninas estavam mocinhas e aí, não se sabe porque, o casal se
separou e a ela coube ficar com as adolescentes. Como era uma pessoa ponderada,
tratou de aproximar o pai e a avó paterna nas meninas. Aqui cabe um porem: a
avó que gostava de polemizar e vivia tramando contra a nora, que na separação
não teve partilha de bens, porque não houve uma separação formal, foi só uma
separação verbal. Pois o casal alimentava esperança de se reconciliar e a mãe
das meninas sempre teve uma conduta irrepreensível, até que, uma noite, o pai
das meninas foi visitá-las e, como de costume, ficou para o jantar. Depois do
jantar, os quatro assistiram a um filme e o pai disse que ia para casa pois
estava muito cansado. E nunca mais foi visto. A última pessoa que o viu, quando
ele saiu, foi o zelador do prédio onde a mulher e a filha moravam. Como estavam
separados, a mulher pensou: vai ver que já arranjou alguém... E assim ela ficou
durante uns três anos. Não era separada oficialmente, não era viúva, porque não
tinha corpo e até qualquer prova em contrario, perante a justiça, se não há corpo
o sujeito está vivo. Algum tempo depois a velha senhora decidiu procurar a
justiça pois deu o filho como desaparecido e ela passou a clamar aos quatro
ventos que queria saber o que acontecera com seu amado filho. Procurou todos os
órgãos competentes, pois queria provar que o filho poderia estar morto. Era de
dar muita pena: uma senhora dos seus quase 80 anos a procura do filho
desaparecido. Foi uma comoção geral. E a cidade inteira passou a viver o drama
daquela mãe na sua busca incansável do seu amado filho. O filho mais novo mudou
de cidade e a testa dos negócios ficou o advogado que era o procurador do pai,
que quando ficou doente passou uma procuração, com plenos poderes, para o
advogado gerenciar os negócios familiares. Até que um dia, pois sempre tem um
dia, apareceu na cidade uma pessoa procurando pelo jovem senhor. A mãe ligou
para ele e que se apresentasse o mais rápido possível na cidade pois estava
sendo procurado. A recomendação da velha senhora foi que pegasse o primeiro vôo
e que ela iria mandar o chofer esperá-lo no aeroporto. Chegou a aeronave e ele
não apareceu. A velha senhora ligou para a casa dele e ele não atendeu. Ligou
para um escritório onde ele raramente aparecia, ninguém respondeu e ela, no
auge do desespero, ligou para a nora que atendeu o celular e disse não saber
pois ele mandou que ela mais os filhos ficassem em casa do sogro sem data para
retornar e que, depois, ele iria dar uma explicação para ela. A velha senhora,
exasperada, ligou para uma pessoa conhecida e deu ordens expressas: que, se
preciso fosse, arrobasse a porta da casa do filho pois ela estava com maus
pressentimentos. A porta foi arrombada e o filho foi encontrado enforcado aos
42 anos. Uma carta dava conta que ele não poderia continuar vivo depois da
morte do irmão mais velho e que ele assumia parte da culpa por ter sido fraco e
ambicioso mas que a idéia foi da velha senhora que achou que estava sendo
lograda pelo primogênito e que mandou que ele contratasse uma matador de
aluguel para dar um susto no filho primogênito. Mas o matador de aluguel que
estava no exercício da sua profissão levou a coisa a sério demais e o resultado
foi a morte do irmão. Pois bem: o matador voltou à cidade e foi procurar o
contratante e a velha senhora que temia pela própria integridade física e que
amava muito o vil metal, não teve dúvidas, chamou o seu caçula para resolver a
perenga. E este, por sua vez, como todo fraco que não quer assumir sua
fraqueza, procurar na morte se justificar. O que sabemos é que a médica hoje é
viúva, o corpo não apareceu e que a velha senhora continua firme e forte
jurando que é inocente e que o filho estava era muito doente... O matador
sumiu, ninguém sabe ninguém viu. Como diria Leon Tostoi “todas as famílias
felizes se parecem, as infelizes são infelizes, cada um a sua maneira”. Como
será que as pequenas vão digerir a estória familiar tão macabra, pois quando
chegaram a idade escolar, mais cedo ou mais tarde, vão ter que carregar um
fardo familiar de ter uma bisavó louca varrida, um tio covarde e fraco e um avô
desaparecido. Sem dúvida foi um caso muito sério. Queira Deus em sua infinita
misericórdia que as meninas moreninhas de cabelos escorridos tenham a força de
sua avó e sua mamãe para enfrentar com compostura e dignidade o que virá
depois. A história ainda não acabou, pois a velha senhora continua firme e
forte agarrada a sua fortuna colossal sempre negando o que já é de domínio
público.
Restaurandora
de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi
classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros
publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais
domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura,
cinema, e a paixão de escrever.
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