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terça-feira, 29 de maio de 2012

A família - Nadia Foes


Pela estrada afora eu vou bem sozinha levar estes doces para a vovozinha, ela mora longe e o caminho é deserto e o Lobo Mau passeia aqui por perto.  São as meninas brincando de roda que ela está recostada, cansada. Vovó, vovó, vovó!!! Ela levanta-se de um salto para atender o chamado das netinhas. Linda, meio ruivinha, de olhos claros e pele clarinha. Ao todo são quatro meninas brincando de roda. A netinha, loirinha de olhos escuros e cabelos cacheados, também está lá, mas quem faz a bagunça é a ruivinha. Da janela ela acena e grita: saiam do sol, já para sombra! E ela volta para o seu descanso sorrindo: são suas netas, sangue do seu sangue, que alegria! Vieram para perpetuar a sua família! E pensa: como será que as duas amiguinhas moreninhas de cabelos escorridos, um dia, não muito distante, vão encarar os fatos de que os familiares? Ou melhor a tragédia! A mãe das meninas moreninhas de cabelos lisos e escorridos é amiga de infância da filha dela que passou muitas temporadas de férias na casa de praia da família como convidada da filha. Não parece, mas já se passaram dez anos, será? A mãe da moça é uma médica muito conceituada e o pai, um rico comerciante. Uma família muito estimada nos meios sociais, até acontecer a tragédia familiar. Eram dois irmãos com idades próximas, estudaram no mesmo colégio religioso. Era o tipo de família exemplar. Quando o mais velho casou com a moça muito bonitinha, frágil, aparentemente, de olhos escuros, e tiveram duas meninas, a sogra não viu com bons olhos o casamento do filho. Logo em seguida casou o caçula em quem ela sempre apostou todas as fichas. Casou com uma moça de outra cidade e o casal teve dois filhos homens. E a vida foi seguindo... A família administrava os negócios, mas logo o pai adoeceu e faleceu, e a velha senhora passou a ocupar o lugar que lhe coube nos negócios de família e sempre colocando um filho contra o outro. Como gostava de uma querela! A nora médica não se preocupava muito, pois tinha mais o que fazer: com duas meninas pequenas, mais a casa, o consultório e as noites de plantão no hospital, não lhe sobrou tempo sequer para notar o quanto aquela família, por conta da velha senhora, vinha se esfacelando. E a correria era grande. Logo as meninas estavam mocinhas e aí, não se sabe porque, o casal se separou e a ela coube ficar com as adolescentes. Como era uma pessoa ponderada, tratou de aproximar o pai e a avó paterna nas meninas. Aqui cabe um porem: a avó que gostava de polemizar e vivia tramando contra a nora, que na separação não teve partilha de bens, porque não houve uma separação formal, foi só uma separação verbal. Pois o casal alimentava esperança de se reconciliar e a mãe das meninas sempre teve uma conduta irrepreensível, até que, uma noite, o pai das meninas foi visitá-las e, como de costume, ficou para o jantar. Depois do jantar, os quatro assistiram a um filme e o pai disse que ia para casa pois estava muito cansado. E nunca mais foi visto. A última pessoa que o viu, quando ele saiu, foi o zelador do prédio onde a mulher e a filha moravam. Como estavam separados, a mulher pensou: vai ver que já arranjou alguém... E assim ela ficou durante uns três anos. Não era separada oficialmente, não era viúva, porque não tinha corpo e até qualquer prova em contrario, perante a justiça, se não há corpo o sujeito está vivo. Algum tempo depois a velha senhora decidiu procurar a justiça pois deu o filho como desaparecido e ela passou a clamar aos quatro ventos que queria saber o que acontecera com seu amado filho. Procurou todos os órgãos competentes, pois queria provar que o filho poderia estar morto. Era de dar muita pena: uma senhora dos seus quase 80 anos a procura do filho desaparecido. Foi uma comoção geral. E a cidade inteira passou a viver o drama daquela mãe na sua busca incansável do seu amado filho. O filho mais novo mudou de cidade e a testa dos negócios ficou o advogado que era o procurador do pai, que quando ficou doente passou uma procuração, com plenos poderes, para o advogado gerenciar os negócios familiares. Até que um dia, pois sempre tem um dia, apareceu na cidade uma pessoa procurando pelo jovem senhor. A mãe ligou para ele e que se apresentasse o mais rápido possível na cidade pois estava sendo procurado. A recomendação da velha senhora foi que pegasse o primeiro vôo e que ela iria mandar o chofer esperá-lo no aeroporto. Chegou a aeronave e ele não apareceu. A velha senhora ligou para a casa dele e ele não atendeu. Ligou para um escritório onde ele raramente aparecia, ninguém respondeu e ela, no auge do desespero, ligou para a nora que atendeu o celular e disse não saber pois ele mandou que ela mais os filhos ficassem em casa do sogro sem data para retornar e que, depois, ele iria dar uma explicação para ela. A velha senhora, exasperada, ligou para uma pessoa conhecida e deu ordens expressas: que, se preciso fosse, arrobasse a porta da casa do filho pois ela estava com maus pressentimentos. A porta foi arrombada e o filho foi encontrado enforcado aos 42 anos. Uma carta dava conta que ele não poderia continuar vivo depois da morte do irmão mais velho e que ele assumia parte da culpa por ter sido fraco e ambicioso mas que a idéia foi da velha senhora que achou que estava sendo lograda pelo primogênito e que mandou que ele contratasse uma matador de aluguel para dar um susto no filho primogênito. Mas o matador de aluguel que estava no exercício da sua profissão levou a coisa a sério demais e o resultado foi a morte do irmão. Pois bem: o matador voltou à cidade e foi procurar o contratante e a velha senhora que temia pela própria integridade física e que amava muito o vil metal, não teve dúvidas, chamou o seu caçula para resolver a perenga. E este, por sua vez, como todo fraco que não quer assumir sua fraqueza, procurar na morte se justificar. O que sabemos é que a médica hoje é viúva, o corpo não apareceu e que a velha senhora continua firme e forte jurando que é inocente e que o filho estava era muito doente... O matador sumiu, ninguém sabe ninguém viu. Como diria Leon Tostoi “todas as famílias felizes se parecem, as infelizes são infelizes, cada um a sua maneira”. Como será que as pequenas vão digerir a estória familiar tão macabra, pois quando chegaram a idade escolar, mais cedo ou mais tarde, vão ter que carregar um fardo familiar de ter uma bisavó louca varrida, um tio covarde e fraco e um avô desaparecido. Sem dúvida foi um caso muito sério. Queira Deus em sua infinita misericórdia que as meninas moreninhas de cabelos escorridos tenham a força de sua avó e sua mamãe para enfrentar com compostura e dignidade o que virá depois. A história ainda não acabou, pois a velha senhora continua firme e forte agarrada a sua fortuna colossal sempre negando o que já é de domínio público.
Restaurandora de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura, cinema, e a paixão de escrever.

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