- O aviso de deixa solto, doutor, dado pelo flanelinha.
- O mergulho na hora do almoço.
- O primeiro gole da cachaça, na ponta do balcão, dado para o santo.
- O braço esquerdo do motorista para fora da janela.
- A camiseta enrolada acima da barriga para minorar o calor.
- O grito do puxador da escola avisando para a escola que “A hora é essa!”, seguido pelo rufar dos tambores.
- Os corações rasgados a canivete na aléia do pau-mulato no Jardim Botânico.
- O filé a cavalo com dois ovos, o ovo cor de rosa e a caracu com ovo batido no liquidificador.
- A toalha de São Jorge que encapa o banco do motorista.
- A plaquinha do “Fale com o motorista somente o indispensável”.
- O torcedor que fica de costas para o campo na hora em que seu time vai bater o pênalti.
- O bloco “Vai dar merda”, o “Rola preguiçosa” e os estandartes do “Simpatia é quase amor”.
- O surdo de primeira da Mangueira.
- O vento nos pilotis do Palácio Capanema.
- O grito do verdureiro alertando que freguesa bonita não paga, mas também não leva.
- O pôr do sol visto do Arpoador.
- A borboleta amarela, a capivara da Lagoa e os micos nos fios do Cosme Velho.
- O momento em que o avião da Ponte Aérea, vindo de São Paulo, passa com a asa da direita rente ao Pão de Açúcar, faz a curva e embica sobre o mar na direção do Santos Dumont.
- As maçãs verdes no lobby do Copacabana Palace.
- O barulho do pé chutando a areia fina de Ipanema.
- O perfume da flor da noite na ladeira da Rua Maria Angélica.
- O momento em que, andando de Ipanema para o Jardim Botânico pela orla da Lagoa, se dá de cara com a parede de morros ao lado do Corcovado.
- O grito que o comandante do iole a oito dá às seis da manhã no meio da Lagoa e chega à borda da Borges de Medeiros.
- O requebrado da mulata e o “gostosa” que lhe atira o peão da obra, estirado na calçada, fazendo a sesta.
- A prancheta do Joel Santana.
- A agenda de telefones da Ivone Kassu.
- Xistudo, a pizza com ketchup e a rosquinha de polvilho.
- O gesto do taxista de começar a corrida passando a mão no terço pregado ao espelho.
- O “bom descanso” que ao fim da viagem o taxista lhe deseja depois de ter vindo feito um louco pelo Aterro.
- A corrida de submarino no Morro do Pasmado e o vidro embaçado.
- O pacote de balas que os ambulantes deixam no retrovisor quando o carro está parado no sinal.
- O gavião do relógio da Mesbla, a perereca da vizinha e a piada do papagaio fanho.
- O apito da fábrica de tecidos.
- A torcida do Flu cantando “A bênção, João de Deus”, a do Fla com o “Tu és time de tradição”, e a rima vascaína de “Ela, ela, ela, silêncio na favela”
- O montinho de areia que as moças fazem para deitar o rosto e deixar o bumbum ainda mais empinado.
- O bumbum empinado.
- O texto dos folhetos das mães ciganas prometendo trazer o amor de volta em três dias.
- O beijo dos dois lados do rosto, o tapinha nas costas e o falso convite do “aparece lá em casa”
- O almoço dos sábados com feijoada regada com caipirinha de lima com cachaça.
- A cantada do “eu te conheço de algum lugar”.
- O jogo de porrinha e a saída em “lona”.
- O sotaque chiado, a sandália arrastada e o grito abafado de “isso, Jorge”, “para, Jorge”, que vem do primeiro andar.
- O PM fazendo a fezinha no bicheiro da esquina.
- O pão na chapa com pouca manteiga e o café pingado no copo.
- O canto gregoriano na Igreja de São Bento e o ôôô das cabrochas da Unidos de Lucas.
- O gesto da moça de acertar a calcinha que lhe adentrou as reentrâncias depois do mergulho.
- A moça que sente com a ponta do pé a temperatura da água e faz como se tremesse o corpo todo diante de tão fria que ela estava.
- A corrida que o garotão dá para, sem se importar com a temperatura da água, mergulhar com uma cambalhota.
- O papo de botequim, a cerveja estupidamente gelada e aquela que matou o guarda.
- A buzinada no sinal já amarelo, sinal para avisar a quem está na transversal que vai ultrapassar assim mesmo.
- O vôo coreografado dos biguás.
- O grito de “a porta tá aberta” e o “dá uma olhadinha nas minhas coisas enquanto eu dou um mergulho”.
- O “a gente se vê”.
- O miudinho dançado pelo Paulinho da Viola.
- A crônica.
*Joaquim Ferreira dos Santos é autor da coluna Gente Boa e às segundas publica sua crônica no Segundo Caderno.
Um comentário:
Oracy, amei essa crônica! reflete bem o espírito carioca, o seu jeitinho de ser.
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