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quarta-feira, 25 de julho de 2012

Tombe-se - Uma lista de bens imateriais do Rio, por Joaquim Ferreira dos Santos

A prefeitura do Rio tem tombado dúzias de eventos (o lambe-lambe, o partido alto, a Banda de Ipanema) como bens imateriais. Na semana passada foi a vez das torcidas e da cachaça, enquanto os moradores do Flamengo pedem que lhe tombem também o tapioqueiro da Rua Paissandu. A crônica, o mais imaterial dos estilos literários, a própria leveza que se desmancha ao vento que sopra das Cagarras, aproveita o ensejo e, certa de que pegou o espírito da coisa, lista suas prioridades imateriais.

 
  • O aviso de deixa solto, doutor, dado pelo flanelinha.
  • O mergulho na hora do almoço. 
  • O primeiro gole da cachaça, na ponta do balcão, dado para o santo.
  • O braço esquerdo do motorista para fora da janela.
  • A camiseta enrolada acima da barriga para minorar o calor.
  • O grito do puxador da escola avisando para a escola que “A hora é essa!”, seguido pelo rufar dos tambores.
  • Os corações rasgados a canivete na aléia do pau-mulato no Jardim Botânico.
  • O filé a cavalo com dois ovos, o ovo cor de rosa e a caracu com ovo batido no liquidificador.
  • A toalha de São Jorge que encapa o banco do motorista.
  • A plaquinha do “Fale com o motorista somente o indispensável”.
  • O torcedor que fica de costas para o campo na hora em que seu time vai bater o pênalti.
  • O bloco “Vai dar merda”, o “Rola preguiçosa” e os estandartes do “Simpatia é quase amor”.
  • O surdo de primeira da Mangueira.
  • O vento nos pilotis do Palácio Capanema.
  • O grito do verdureiro alertando que freguesa bonita não paga, mas também não leva.
  • O pôr do sol visto do Arpoador.
  • A borboleta amarela, a capivara da Lagoa e os micos nos fios do Cosme Velho.
  • O momento em que o avião da Ponte Aérea, vindo de São Paulo, passa com a asa da direita rente ao Pão de Açúcar, faz a curva e embica sobre o mar na direção do Santos Dumont.
  • As maçãs verdes no lobby do Copacabana Palace.
  • O barulho do pé chutando a areia fina de Ipanema.
  • O perfume da flor da noite na ladeira da Rua Maria Angélica.
  • O momento em que, andando de Ipanema para o Jardim Botânico pela orla da Lagoa, se dá de cara com a parede de morros ao lado do Corcovado.
  • O grito que o comandante do iole a oito dá às seis da manhã no meio da Lagoa e chega à borda da Borges de Medeiros.
  • O requebrado da mulata e o “gostosa” que lhe atira o peão da obra, estirado na calçada, fazendo a sesta.
  • A prancheta do Joel Santana.
  • A agenda de telefones da Ivone Kassu.
  • Xistudo, a pizza com ketchup e a rosquinha de polvilho.
  • O gesto do taxista de começar a corrida passando a mão no terço pregado ao espelho.
  • O “bom descanso” que ao fim da viagem o taxista lhe deseja depois de ter vindo feito um louco pelo Aterro.
  • A corrida de submarino no Morro do Pasmado e o vidro embaçado.
  • O pacote de balas que os ambulantes deixam no retrovisor quando o carro está parado no sinal.
  • O gavião do relógio da Mesbla, a perereca da vizinha e a piada do papagaio fanho.
  • O apito da fábrica de tecidos.
  • A torcida do Flu cantando “A bênção, João de Deus”, a do Fla com o “Tu és time de tradição”, e a rima vascaína de “Ela, ela, ela, silêncio na favela”
  • O montinho de areia que as moças fazem para deitar o rosto e deixar o bumbum ainda mais empinado.
  • O bumbum empinado.
  • O texto dos folhetos das mães ciganas prometendo trazer o amor de volta em três dias.
  • O beijo dos dois lados do rosto, o tapinha nas costas e o falso convite do “aparece lá em casa”
  • O almoço dos sábados com feijoada regada com caipirinha de lima com cachaça.
  • A cantada do “eu te conheço de algum lugar”.
  • O jogo de porrinha e a saída em “lona”.
  • O sotaque chiado, a sandália arrastada e o grito abafado de “isso, Jorge”, “para, Jorge”, que vem do primeiro andar.
  • O PM fazendo a fezinha no bicheiro da esquina.
  • O pão na chapa com pouca manteiga e o café pingado no copo.
  • O canto gregoriano na Igreja de São Bento e o ôôô das cabrochas da Unidos de Lucas.
  • O gesto da moça de acertar a calcinha que lhe adentrou as reentrâncias depois do mergulho.
  • A moça que sente com a ponta do pé a temperatura da água e faz como se tremesse o corpo todo diante de tão fria que ela estava.
  • A corrida que o garotão dá para, sem se importar com a temperatura da água, mergulhar com uma cambalhota.
  • O papo de botequim, a cerveja estupidamente gelada e aquela que matou o guarda.
  • A buzinada no sinal já amarelo, sinal para avisar a quem está na transversal que vai ultrapassar assim mesmo.
  • O vôo coreografado dos biguás.
  • O grito de “a porta tá aberta” e o “dá uma olhadinha nas minhas coisas enquanto eu dou um mergulho”.
  • O “a gente se vê”.
  • O miudinho dançado pelo Paulinho da Viola.
  • A crônica. 

*Joaquim Ferreira dos Santos é autor da coluna Gente Boa e às segundas publica sua crônica no Segundo Caderno.

Um comentário:

andrea viana disse...

Oracy, amei essa crônica! reflete bem o espírito carioca, o seu jeitinho de ser.