Eu estava lá quando a mãe dele morreu, estava naquele quarto, naquela
madrugada, mas não a vi morrer - só tinha olhos para meu pai, que no
outro lado da cama me pareceu tomado por um descontrole emocional para
mim inédito. Bateu em mim uma pena sem tamanho daquele homem, já tão
velho, coitado, e agora integralmente órfão. Nos meus 18, era
velhíssimo, digno de dó, alguém que tivesse, como meu pai naquele
instante, 44 anos de idade.
Eu não estava lá, 45 anos mais tarde, no momento em que ele morreu,
deixando-me, também a mim, integralmente órfão, e já iam bem longe os
meus próprios 44. A sua voz se havia transformado em sussurros cada vez
menos audíveis, ele que gostava tanto de falar, e pouco antes de
calar-se em definitivo fez saber, no que talvez tenham sido suas últimas
palavras: "Estou no mato sem cachorro".
Posso imaginar o quanto deve ter custado àquele fazedor saber que
estava num beco sem saída. Pois não era homem de entregar os pontos. Me
lembro dele, por exemplo, a pelejar por uma causa que na minha
adolescência me soava quixotesca, ao ponto de sentir constrangimento ao
ver meu velho naquele papel. As mineradoras - insistia ele ao menor
pretexto, ou sem pretexto algum, no papo, nas palestras, em escritos e
entrevistas que ia oferecer aos jornais - estavam aniquilando as matas
que, no outro lado da Serra do Curral, o paredão que emoldura a capital
mineira, garantiam a sobrevivência dos mananciais de água da cidade.
A certa altura me mandei, e foram anos sem botar os pés na minha
cidade. Ao revisitá-la, topei com um onipresente adesivo nos automóveis:
"Olhe bem para as montanhas". Mas já era tarde. Olhar para as
montanhas, agora, era constatar o desastre: não só as matas como o
próprio perfil da Serra do Curral haviam sido roídos pela glutonaria
férrea das mineradoras.
Ambientalista quando ainda não se usava a palavra, meu pai dedicou
boa parte de seu tempo a outra empreitada quixotesca, tema de uma
crônica em que o chamei de O Espalhador de Passarinhos: sem alarde,
capturava aves onde fossem abundantes, para soltá-las onde houvessem
escasseado ou desaparecido. Vivia às turras com o Ibama, que burramente
via nele um mercador de pássaros. O mesmo Ibama que anos mais tarde
criaria um Prêmio Hugo Werneck para estimular o repovoamento de aves.
Em nossas longas décadas de convívio, nem sempre nos entendemos, e
muitas vezes francamente nos desentendemos. Inalcançável, aquele
ex-campeão de basquete que nunca fumou nem bebeu, que acordava cedo e
tomava banho frio, que se casou com a primeira namorada e com ela viveu
por mais de meio século. Jovem, ele era duro, era brusco, felizmente sem
violência física. Não se inventou assim, por certo: vinha de troncos
ásperos a que faltavam os musgos do carinho. Mas o tempo lhe foi
trazendo doçura e flexibilidade. Num percurso bem pouco encontradiço,
meu pai envelheceu para a esquerda, se me faço entender, pois não falo
aqui de política: nos machos, sobretudo, a ferrugem da velhice costuma
acentuar a intolerância e o conservadorismo, mas com papai foi
diferente. Ele ganhou veludos.
Com minha própria quota de intolerância juvenil, eu não podia vê-lo
assim - até o dia em que, por encomenda de uma revista, escrevi aquele
texto, O Espalhador de Passarinhos, para em seguida me dar conta de algo
inesperado: embora não tivessem sido esquecidos, nossos contenciosos se
haviam desarmado; ainda bem que não cheguei a derramar sobre meu pai um
picles verbal que por anos deixara acidular.
Não houve o tribunal que eu programara, nem aquele texto não
premeditado operou algum milagre. Minha surpresa foi a de quem não
percebera que também havia caminhado para a compreensão. E não deveria
me espantar: não é assim, escrevendo, que um escritor, mesmo sem o
saber, pode encarar e resolver suas mais fundas questões?
Me faz uma falta danada, aquele camarada.
Postado originalmente pelo Estadão
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