O que leva um proprietário a recusar uma oferta de até R$ 12 milhões por seu imóvel
Bastou o intervalo de semanas para que se chegasse ao
fim de uma era: há um mês, quase que ao mesmo tempo, foram vendidas as
duas últimas casas da orla de Copacabana. A maior - um palacete rosado,
na altura da Rua Francisco Sá - acabou arrematada por R$ 40 milhões,
valor pago pelo grupo Emiliano, de São Paulo, para a construção de um
hotel de luxo. A menor - uma mansão de pedra, próxima à Santa Clara -
foi adquirida pelo em-presário Omar Peres, dono do restaurante
Fiorentina. Peres desembolsou R$ 28 milhões pelo terreno que, planeja,
também abrigará uma hospedagem de fino trato.
A venda da casa rosada era tida como favas contadas: o
lugar, onde funcionou o consulado da Áustria, estava fechado havia três
anos. Já a venda da casa de pedra, não. Desde 1917, quando se mudara
para lá, a proprietária Zilda Azambuja Canavarro Pereira não aceitava
ouvir uma única oferta pelo local. Zilda esteve na casa durante o começo
da Era Vargas, o fim da Segunda Guerra Mundial, a explosão das bombas
de Hiroshima e Nagasaki, a construção de Brasília, a criação do estado
de Israel, a publicação do AI-5, a chegada do homem à Lua, o surgimento
da internet, a queda do Muro de Berlim, a clonagem da ovelha Dolly, o
impeachment de Fernando Collor e o nascimento de Sasha Meneghel. Dos 101
anos em que permaneceu na terra, 94 foram passados sob o mesmo teto - o
da Avenida Atlântica 2.692. Pela ligação afetiva com o local - e por
ser uma mulher de posses - Zilda decidiu que, em vida, jamais deixaria a
casa. Assim foi, até o último mês de maio.
Mas, no cobiçado mercado imobiliário da Zona Sul
carioca, Zilda não foi a única proprietária a sobrepor sua história ao
montante (geralmente farto) oferecido por empresas do ramo. Na Rua
Prudente de Morais, em Ipanema, uma senhora de nome Denise expulsa, pelo
interfone, qualquer um que proponha comprar sua pequena casa, numa vila
colada à igreja japonesa Perfect Liberty. Na mesma rua, em frente ao
hotel Everest Park, um engenheiro aposentado da Petrobras instalou uma
placa em seu portão: "Este imóvel não está à venda. Pede-se não
insistir." Herdou a casa do pai; de lá não sai.
Na esquina da Avenida General San Martin com a Rua
General Venâncio Flores, no Leblon, o edifício construído em torno do
restaurante Juice & Co. precisou ser feito em formato de "L" porque o
antigo proprietário da casa se recusa¬va a sair. A poucos quarteirões
dali, na Avenida Delfim Moreira, um médico radiologista diz já ter
recusado R$ 60 milhões pela última casa do metro quadrado mais caro da
cidade.
- O sujeito que se recusa a vender ou é especulador ou é
maluco - resume Cláudio Castro, diretor da Sergio Castro Imóveis,
corretora es¬pecializada na compra e venda de casas. - E o cara que fica
por uma razão afetiva é maluco também. Vai continuar morando numa casa
sem sol, cercada de prédios, com bandido pulando muro, correndo o risco
de ser assassinado. Tem casos que eu até já desisti.
Um deles é o do empresário João Carlos Aleixo, de 65
anos. Dono dos restaurantes Artigiano e Pomodorino, em Ipanema, ele mora
com a mulher numa casa bucólica, na esquina da Epitácio Pessoa com
Maria Quitéria, na Lagoa. O terreno, de 160 metros quadrados, está
encalacrado entre outros quatro - comprados pelo construtor Rogério
Chor, fundador da CHL.
No último ano, Aleixo teve três encontros com Chor, que,
segundo conta, chegou a lhe oferecer R$ 12 milhões pelo terreno (o
preço é cinco vezes maior do que o que se costuma pagar pelo metro
quadrado na Lagoa, de acordo com o índice Fipe Zap). Foi irredutível.
- Financeiramente, a proposta era interessante. Me
ofereceram dinheiro, apartamento, disseram que eu estava rasgando
dinheiro - lembra Aleixo. - Mas aqui em casa não tem reunião de
condomínio, não tem vizinho perturbando. Corro todo dia na Lagoa,
trabalho perto. Está bom para morar com minha mulher.
Havia, ainda, uma segunda razão: Aleixo pretende
transformar o local num restaurante para a sobrinha de 17 anos, que
estuda gastronomia.
- O que faz a pessoa não vender o imóvel é um sonho por
trás, alguma coisa com valor sentimental - explica. - E a casa tem uma
arquitetura bonita. Não quero que seja derrubada.
Em viagem, Chor não pôde responder à revista. O edifício
a ser construído, ainda em fase inicial, foi remodelado em formato de
"L" sem os 160 metros quadrados de Aleixo.
- Eles ficaram loucos. O projeto ficou totalmente torto - diz ele, rindo.
Caso parecido viveu o cirurgião plástico José Antônio
Beramendi, de 63 anos, a uma rua dali. Dono de uma pequena clínica com
dez metros de frente, na Joana Angélica, ele foi a pedra - e, depois, a
palmilha - no sapato do construtor Marcus Cavalcanti, em 2002.
Em posse do terreno posterior, Cavalcanti ofereceu R$ 900 mil, mais dois apartamentos, pelo espaço da clínica. Em vão:
- Era um valor significativo, mas eu não sabia o que
fazer com o dinheiro - lembra Beramendi. - Além disso, estou aqui há 16
anos, minha casa é no bairro, e quero deixar a clínica para o meu filho,
que é cirurgião. Para a profissão é bom: Ipanema é referência mundial.
Não era o fim da história. Como Cavalcanti pretendia
construir um edifício cercado de varandas - o Residencial Joana Angélica
- precisou se precaver de que, no futuro, nenhum prédio fosse erguido
no terreno de Beramendi. Pagou R$ 100 mil pelo "espaço aéreo" da casa.
Foi a saída honrosa para que nenhum morador perdesse a
vista da copa das árvores. Está na certidão de cada imóvel - diz João
Marcus Cavalcanti, gerente geral da construtora.
O caso mais folclórico de apego (não exatamente afetivo)
a um apartamento ocorreu nas décadas de 70 e 80, em Copacabana.
Proprietário do apartamento 201 do Edifício Leão Veloso, na esquina das
avenidas Atlântica e Princesa Isabel, Alcemar Assad esperou que todas as
unidades do prédio fossem vendidas à Companhia de Hotéis Ritz, que
pretendia pô-lo abaixo para fazer um cinco estrelas. Em posse do último
apartamento, mudou-se para Nova Iguaçu, deixou um vigia morando em seu
lugar e passou a cobrar uma quantia exorbitante pela escritura: 30 vezes
mais que os outros condôminos. O caso permaneceu por anos na Justiça,
enquanto janelas, portas, paredes e canos do edifício se deterioravam.
Em 1980, quando a história completou dez anos, o "Jornal
do Brasil" publicou que "a disputa estava longe de acabar, para a
tranquilidade dos ratos e fantasmas, que os banhistas e moradores do
Leme garantem habitar os nove andares" O edifício foi posto abaixo em
1987. Deu lugar ao Atlântica Business Center.
- A maioria das histórias é de insucesso; essa é a vida
do corretor - sentencia, por telefone, Cláudio Castro. - Tenho uma lista
das casas que nos interessam. Ligamos todo ano, para passar conversa.
Às vezes vão dez corretores diferentes falar com a mesma velhinha. O
décimo consegue, pela empatia.
Foi assim, conta, que intermediou a venda do Hotel
Paris, onde, até dois anos atrás, funcionava o mais famoso meretrício do
Centro.
- O prédio era da família Reis, que fundou o Café Capital. O problema era que a herdeira desligava na cara dos corretores.
Castro mudou a estratégia.
- Eu disse que não era corretor, que tinha horror a
corretor, que estava fazendo uma pesquisa sobre café. Depois, cantei o
jingle do Café Capital: "Bom mesmo é Café Capital / É bom / Tomo um,
tomo dois, tomo três / Porque / Depois de um Café Capital / Bom mesmo é
Café Capital outra vez."
Vendeu o prédio por R$ 1,3 milhão.
Na Tijuca, sua simpatia não funcionou. De¬pois de
negociar a compra de seis casas de vila para a construção de um hotel,
faltou a derradeira, no fim da rua. Avaliada em R$ 1,2 milhão, pertencia
a uma senhora de 70 anos:
- Eu disse que pagava R$ 2 milhões, ela respondeu que
não vendia nem por R$ 10 milhões. Então o meu cliente, que tinha
comprado as seis casas, demoliu todas, e deixou o entulho no lugar.
Resultado: a senhora cravou que, a partir de então, não venderia nem por R$ 20 milhões.
- Quatro semanas depois, a velha saiu para trabalhar, e
ele demoliu a casa dela, alegando ter sido um engano. Pagou R$ 6 milhões
de indenização e ficou por isso mesmo.
Castro não revela o nome do hotel.
Quem dá as regras do jogo e dita as normas urbanas não é
o governo, mas o mercado imobiliário - lamenta o arquiteto Sydnei
Menezes, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de
Janeiro.
Menezes lembra que Copacabana foi "construída e demolida" quatro vezes, calcada na especulação imobiliária:
- Teve o momento dos casarões, dos sobrados, dos edifícios pequenos e dos grandes. Mas o solo é o mesmo. Isso é antiurbanismo.
Por isso, nutre respeito por quem se recusa a vender seu imóvel, independente do que lhe é ofertado:
- Separo essas pessoas em dois grupos. O da esperteza e o
que se desprende do dinheiro e peita as regras de forma corajosa. Tem
um lado romântico nisso.
O comerciante português Domingos Campos, de 83 anos,
pertence a esse segundo grupo. Trabalha, há 57 anos, na Casa Campos
Ferragens, de onde foi funcionário, sócio e, por fim, dono. A loja é uma
estranha no ninho da Rua Dias Ferreira, endereço comercial badalado do
Leblon. Campos diz que a última tentativa de compra aconteceu há dois
anos:
- Nem deixo que me ofereçam nada. Moro a um quarteirão, venho e volto andando. Se o camarada gosta de onde está, fica.
É por isso que Maria Elisa Costa, de 78 anos, não deixa seu apartamento, num prédio pequeno, no fim da Avenida Delfim Moreira.
- Se eu tivesse que escolher um lugar para morar, seria o
Rio. Um lugar no Rio para morar, seria exatamente onde eu moro. Sair
seria uma pobreza de espírito - justifica.
Filha do urbanista Lúcio Costa, Elisa se mudou com pai, mãe e a irmã Helena em 1940, quando o Leblon era um bairro periférico.
- Isso era que nem Vargem Grande. Com o orçamento apertado que meu pai tinha, era o que dava para alugar - lembra.
Com o passar do tempo, a família acabaria adquirindo
metade dos seis imóveis do prédio. Há alguns anos, Elisa foi cortejada
pelo fazendeiro José Luís Ribeiro, dono de dois dos apartamentos
restantes:
- Ele comprou os apartamentos dos fundos e queria os meus, obviamente com essa miragem de colocar o prédio abaixo.
Ela desconversou. José Luís confirma o encontro:
- Meu filho é arquiteto. Não quer que seja feito um
prédio monstruoso. Disse a ela que, se fosse vender, que me desse
preferência.
Elisa filosofa:
- Podem ser 10, 20, 30, mil, milhões, reais, dólares,
euros, eu não quero saber. Se a vida me deu o presente infinito de morar
no lugar que eu adoro, vou dispensar isso? A grande coisa, quando você
fica mais velha, é andar junto com o tempo. O futuro não me prende mais.
Quando eu estiver no São João Batista, a família resolve o que fazer.
O Globo, Roberto Kaz