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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

É o prisma - Nadia Foes



Celinha passa horas na posição de lótus fazendo meditação. Como ela está com uma lesão de menisco não pode sequer flexionar o joelho. Agora são três posições, sentada, na horizontal e na vertical. Nesse exato momento ela está deitada com o computador ao lado, pensando: hoje ela completa quarenta e três anos de casamento. O mais curioso é que ela não consegue lembrar do primeiro aniversário de casamento, por mais que se esforce. Segundo o seu marido Celinha tem memória de elefante, e agora ela não consegue recordar os primeiros anos, se teve qualquer tipo de comemoração e volta para vasculhar as gavetas emperradas da memória. Dali não sai nada. Ela namorou durante sete anos um homem, casou com este homem, adormeceu ao lado dele e amanheceu com outra pessoa. Casou com um homem generoso, amoroso, sensível, companheiro que se transmutou em um homem dominador, agressivo, insensível e ainda por cima infiel. Ela manteve um monólogo com o marido. A cada filho que nascia ele sumia e só retornava uns vinte dias depois. Cada mudança de residência ele alegava estar muito ocupado e só retornava para a casa nova depois da mudança feita. Acompanhar mulher à pré Natal, nem pensar, porém Celina enfeitava a vida, adorava organizar uma festa. Tudo era motivo para comemorar, menos o aniversário de casamento. Os filhos cresceram em um lar onde imperava a ordem. Tudo bem organizado, crianças bem cuidadas, bem nutridas e uma mãe jovem, bonita e perfeita. E um papai que a mamãe ensinou os filhos a amar acima de todas as coisas. Celinha quis uma família perfeita, o tipo de família para tirar retrato. Ela não recorda quando a que altura da relação ela deu início a um ritual, ou mania mesmo, mania de mandar rezar uma missa em ação de graças pelo aniversário de casamento. Todos deviam participar, até a empregada doméstica era solicitada. Após a missa, um brinde com champagne e um requintado jantar. Os filhos curtiam. Celinha se apegou a essa nova tradição com fervor. O senhor Casmurro participava e Celinha notava, durante a missa, um rito de ironia no seu semblante. Ela sabia que no fundo ele ridicularizada aquela mania de aparentar a felicidade que não existia. Pode parecer paranóia, mas ela gostava de se imbuir de um romantismo que jamais existiu. Na cabeça organizada de Celinha, o impacto que a verdade daquele casamento poderia causar aos filhos seria sem proporções. E durante anos a família viveu a fantasia. O casal era considerado pelos amigos um exemplo de força e união, porém Celinha, para ter forças para levar a sua fantasia de mulher feliz, aprendeu a dar um tempo. Não sabe quando tudo começou. Os filhos já estavam crescidos e ela passou a sonhar a longo prazo. Primeiro ela sonhou com a possibilidade do casal se reencontrar e ainda ter tempo para ser feliz. Depois passou a sonhar com a separação. Ela se dava período de cinco anos. Teria o tempo do filho fazer a faculdade, mais cinco anos para o filho fazer a pós, doutorado, aí ela iria resolver a vida dela. Jamais pensou em abandonar os filhos em momento algum. O filho se formou, fez pós, já estava encaminhado, Celinha pensou, vamos dar mais cinco, esperar a filha concluir a faculdade. Quando a filha se formou já estava noiva. Celinha pensou: mais cinco anos até o casamento da filha. A filha casou e disse para o noivo que gostaria de ter uma vida de casada tão feliz quanto a de seus pais. E foi aí que Celinha sentiu que era muita responsabilidade se descasar. E continuou casada e encomendando a missa anual até sua filha caçula terminar a faculdade. E repentinamente Celinha parou com as missas, com os brindes, jantares requintados. Juntou tudo e guardou na penumbra do casamento. Celinha, deitada, faz a retrospectiva de seu casamento. Aí lembrou que era hora de tomar o café da manhã. Levantou, encontrou o marido no corredor. Ele ia descer para tomar o café. Mal cumprimentou a mulher, deu um “bom dia Celinha” seco, bem típico dele, com a voz gutural. Ela respondeu e foi se arrumar. Quando desceu, ele já havia tomado o seu café e assistia televisão. Celinha, após tomar o café, foi checar suas mensagens e passou para a rede social e foi naquele momento que ela viu na lateral da telinha a palavra evento e começou a brincar. Colocou na lista de eventos o seu aniversário de casamento, dia e hora, o nome do mais famoso restaurante de Paris, o endereço, compartilhou e enviou um convite para o seu marido. Segundos depois, mais de trinta cumprimentos foram postados pelos amigos e Celinha tratou de explicar aos queridos amigos que fora somente uma brincadeira. Pois a brincadeira se prolongou até o anoitecer. Celinha recolheu as cinzas da paixão e foi dormir, não sem antes pensar com uma certa ironia, que durante anos as missas que ela encomendara não eram em louvor da união do casal, mas sim para pedir forças, muita força e coragem para permanecer na sua solidão a dois. E nisso ela foi atendida. Aquele senhor jamais soube o que teve nas mãos. Jamais saiu de dentro de si. Quanto a Celinha ela se habitou com a situação de tal maneira que nada mais fere o seu coração. É, Deus ouviu as suas preces!


Restaurandora de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura, cinema, e a paixão de escrever.


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