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quarta-feira, 12 de setembro de 2012

PARA ESPANTAR O BODE - Joaquim Ferreira dos Santos

 Quase não ouço música.
Tenho manifestado uma
opção preferencial pelo
silêncio. Escuto vozes o dia
inteiro, e quem me dera
fossem de “dead people”.


Meu querido Arthur Dapieve, eu li, como de hábito, o seu texto de sextafeira próxima passada — e uso essa expressão por pura curtição pessoal, em louvor ao dono dela, o grande locutor esportivo Orlando Batista. Mesmo presumindo que ele não seja um ícone da sua geração de rádio-ouvinte-esportivo, eu cito o Orlando como cumprimento viril a você, também fã do esporte bretão.

Pois, então, Dapi. Li suas bem traçadas, no caso apraz citado, focalizando o relançamento de “Tem que acontecer”, do Sérgio Sampaio. É um dos meus discos preferidos. Eu ia sorvendo feliz cada uma de suas exaltações à música do Sérgio, mais um de nossos ídolos levados pela maldita da cachaça. De repente, o texto já no último parágrafo, percebi o inexorável. Você não ia citar a minha música preferida do disco, a estupenda “Velho bode”, aquela do “Você é um fracasso/ do meu lado esquerdo do peito/ uma corda de nylon/ de aço/ que arrebenta quando eu faço dó”. Nesse “dó” final, ele tira o som da nota no violão, um dó pungente capaz de deixar humilhados os do Nélson Cavaquinho.

Eu estou te escrevendo, meu bom Dapi, para não deixar passar em branco o bode do Sérgio Sampaio, um dos bichos mais geniais da MPB (ao lado do “Pato”, do João, do “Sapo”, do Donato, da “Perereca”, da Dercy), e também porque está sendo lançado um livro com o título de “1001 músicas que você deve ouvir antes de morrer”. É o velho truque das listas, e eis que mais uma vez me deixo cair na armadilha de, primeiro, ficar curioso, e, em seguida, furioso. O livro deixou de fora o “Bode”, todas as outras músicas do Sérgio Sampaio, e também “Carinhoso”.

Faz sentido, Dapi, um cara ter vindo a esse mundo-de-meu-deus, se livrar de todos os carrinhos por trás da zaga adversária, sobreviver até a idade adulta aos rabos de arraia dos inimigos, e se despedir deste vale de lágrimas miserável sem alguém ter lhe recomendado a audição de Pixinguinha?

O livro é de um inglês, fala da música popular de todo mundo, e contempla o Brasil com indicações polêmicas que não vêm ao caso, porque música boa é a que assim lhe cai aos ouvidos.

Eu fui criado ouvindo o programa do César de Alencar na Rádio Nacional, depois, adolescente, passei para o “Hoje é Dia de Rock”, do Jair de Taumaturgo, na Mayrink da Veiga. Sei que Anísio Silva cantando “Quero beijar tuas mãos”, “Kokomo”, dos Beach Boys”, e o jingle do Café Capital, pela Dóris Monteiro, músicas que confundocom as harpas dos anjos, não são exatamente para uma listagem internacional.

Mas, meu bom Dapi, cá entre nós: o que sabem esses ingleses? O que sabe qualquer outro senão nós mesmos, da música que se deve ouvir antes do vento gélido soprar na nuca, dizer “chegou a hora” e a mão caridosa de uma amiga nos puxar o cobertor até a altura dos olhos, encerrando a vã jornada?

Eu vou confessar, querido companheiro, que alimento sobre você uma invejinha branca, embora ultimamente esteja preferindo as mais morenas. Quase não tenho ouvido música. Ouvi o “Rio”, do Keith Jarret, com empolgação, e as deliciosas babas-bregas do último CD da Marisa Monte. De resto, tenho manifestado uma opção preferencial pelo silêncio (já escuto vozes o dia inteiro, e quem me dera fossem de “dead people”). Quando pego o jornal e te vejo descobrindo novos sons, abrindo as orelhas sem preconceito aos tambores do planeta, sinto a tal invejinha — e por isso achei que serias o parceiro ideal para compartilhar as sugestões que pretendo mandar aos ingleses.

Que numa próxima edição, e livros de listas têm muitas, eles não se esqueçam de “Para ver as meninas”, do Paulinho da Viola, do “Preciso aprender a ser só”, dos irmãos Valle, e o “Nova ilusão”, do Pedro Caetano e Claudionor Cruz, cantada pela Marisa Monte. São canções para se cantar baixinho, porque eu vejo essas pessoas ouvindo música com o fone empurrado para dentro das orelhas, e faço tsk, tsk. Queria lhes apresentar o benefício do sussurro. Astrud Gilberto cantando “Insensatez” não faz mal ao ouvido antes do estrondo insuportável do bater das botas.

Eu sou de uma geração em que a ordem do mundo mudava ao sabor de um LP do Caetano, do Chico, dos Beatles. Hoje, eu ouço o Criolo, os crioulos do rap, e, a não ser que você me desminta, Dapi, não percebo as águas do mar se abrindo. A música não é mais o importante, mas o show. Por isso, vou dizer aos ingleses: as 1001 músicas que eu quero ouvir antes de morrer são as que já ouvi desde nascer. Toca aí “Desencontro”, do Chico, “Luzia luluza”, do Gil, “Qualquer bobagem”, do Tom Zé, e “Meu pobre blues”, do Sérgio Sampaio. Para animar o enterro, toquem “Oba”, do Bafo da Onça, e “Palmas no portão”, do Cacique.

Que tal, meu bom Dapi, se eu juntasse a minha lista daqui com as tuas daí, e para enfrentar os ingleses lançássemos o que realmente interessa, o nosso “Músicas para espantar o bode”?

O GLOBO

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