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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Cismas de um velho poeta, por Nilson Ribeiro

Estamos cada vez mais velhos e somos cada vez mais, formando uma população abjeta, invadindo e conturbando as cidades. O que fazer com essa realidade crescente, de gente com mais de 60, que vai perdendo a massa muscular, caminhando devagar, atravancando tudo, nas ruas, calçadas, ônibus, nas filas dos bancos; alguns ainda na ativa (pasmem) como office boys, pois que o INSS já não dá pra cobrir os ínfimos gastos. Outros, mais afortunados, aposentados de vez, antes atleta nas horas vagas, hoje impossibilitados pra quase tudo, até de um simples futevôlei que seja, ou mesmo de uma inocente partidinha de peteca no sítio; pulmão bichado, gradativamente revestido pela nicotina alheia, e volta e meia ainda vivendo assaltado pelo temor recorrente de um temível trombadinha ou pela osteoporose silenciosa, ambos espreitando sorrateiros em cada desvão ou degrau da esquina, levando quem sabe à sina de uma queda iminente. E de repente lá se vai a tíbia ou o fêmur por água abaixo.

Mas o destino é igual pra todos, viver é assaz impreciso e perigoso nessa idade. Esse trânsito terrível, esse estresse inclemente de buzinas, qualquer coisa bôba altera a glicose pra níveis preocupantes. Haja insulina, que o pâncreas, coitado, alquebrado já não produz direito.

A alimentação tem de ser balanceada, diz o doutor, regrada e em intervalos regulares que nunca condizem com o apetite da gente. Seja como fôr, não convém abusar, pois a vesícula já se foi, e desse jeito não há fígado que aguente. Para o alzheimer espantar tem o joguinho de damas na decrépita pracinha do bairro; mas qual, os bancos agora de cimento (que é pra ninguém roubar) vão queimando a coluna, deixando a bunda dormente, desconcentrando a gente e pondo o jogo a perder. Já desisti de jogar, não dá mais !

Leitura, é só recostar na poltrona que o sono vem ligeiro logo nas páginas iniciais de um livro pego na estante ao acaso; óculos pousados no tapête, aquele sono danado que nos abandonou na madrugada inteira, agora se faz presente. Que saudade da tão sagrada madrugada de antigamente, quando bebíamos seguidas rodadas no bar, batucando sempre um sambinha na mesa; éramos gente bonita, de bem com a vida, brindando por tudo até o Sol nascer. Beber agora, sem chance, a hipertensão não deixa.

Os amigos, que solidão, esses se foram e se vão, de uma forma ou de outra, tão misteriosamente que nem dá pra contar da turma escolar quantos ainda são. Música, se tento cantarolar alguma, a lêtra bandida me escapa, os versos se perdem à toa. Rebuscando pelo menos o refrão, só me vem das canções mais antigas, pois memória de idoso é assim, seletiva, seletiva...

Dança de salão na terceira idade, que maldade, é um arrastar de pés pra lá e pra cá, o esporão fisgando no calcanhar; a dama com fogacho, impaciente e já abandonando o claudicante par nos primeiros passos. Desisto também! Meu Deus, o que fazer com toda essa gente, tem a próstata pra tratar (quando ainda dá), tem a incontinência urinária, o fraldão, a urticária e a babá, já não querendo aturar alguém tão impertinente. Nessa hora o verbo asilar (é assim mesmo) já começa a nos rondar sub-repticiamente, insinuando-se nas conversas paralelas, malicioso, envolvente.E dizer que já fomos importantes, inteligentes...

Estudamos, graduamos, trabalhamos, geramos empregos, enfim, ajudamos a desenvolver esse país; hoje tão infeliz, assolado por crimes hediondos, roubalheiras mil, crueldades por toda parte. Dá até uma dor no coração ao pensar que não tem mais remédio. Não com esses políticos que aí estão, corruptos sem fim, corporativistas caras de pau, só atilados ao extremo em como melhor fraudar a nação. Pelo menos com a maioria é assim.

E numa súbita taquicardia relembro com nostalgia do meu primeiro amor. Nunca mais tive notícias...

Será que viva ainda está? Solteira, viúva, será?Se eu soubesse nessa tal de internet entrar , vasculharia tim tim por tim tim descobrindo afinal seu paradeiro.Quem sabe aquele amor, impossível naquela época, como fênix não renasceria agora. Será que ela ainda guarda um pouquinho daqueles belos traços de outrora, os olhos vivos, o porte altivo que me tirava do ar?Certamente envelheceu, mas será que também se acabou, ficou gorda, ou mesmo esquelética, feia como eu, carrancuda, diabética, a pele tracejada, do mundo desesperançada, querendo no máximo com um breve olhar me desencorajar, dizendo que já não dá... 

E sem calor me dizer adeus? O tempo passou, e não volta mais, essa é a verdade.Também que ridículo esse meu papel, romântico, descabido, sonhar com dois velhos apaixonados, combalidos, em plena rua abraçados, meio tontos a se beijar.Que quadro mais absurdo, com essa idade ! Se ainda fôsse num recanto escondido...

É, tem jeito não, acho que nada mais restou, se até mesmo o sentimento mais sublime que é o amor, envergonhado ficou, constrangido, fugindo de mim pra nunca mais voltar. O que fazer então senão me conformar com a inefável solidão desse caminhar sem graça dos últimos dias ? Bem, não era bem isso o que eu queria, não era assim que previa acabar. Solitário, abandonado, triste e tão sem lugar.
Nilson Ribeiro, poeta ao acaso desde menino, fluminense de 57 anos, dos quais 42 de labuta, lidando com gente de todo quilate, fiz disso inspiração diária pra aguentar os trancos da vida.

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