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domingo, 23 de dezembro de 2012

O holocausto cognitivo - Arthur Dapieve

Publicado por Jornal O Globo, Cultura

Noto a tendência a se pensar a memória apenas como uma especificação técnica de computador
Tenho um amigo que, depois de trabalhar muito tempo na Europa e nos EUA para
uma das gigantes da informática, decidiu voltar ao Brasil. Na primeira
tentativa, ouviu nas entrevistas de emprego que era superqualificado. Ele não se
importava de ser mais bem preparado do que a vaga pedia e pagava, mas amargou
meses de desemprego até decidir se recandidatar a trabalhar lá fora, na mesma
empresa de onde pedira demissão. Foi aprovado para duas vagas diferentes e
escolheu trabalhar numa cidade americana onde ainda não morara. Passaram-se mais
alguns anos. Ele quis voltar ao Rio de vez, para retomar os estudos, o que fez.
Logo também virou professor.
Porém, o dia a dia não lhe tem sido fácil fora da sala de aula. O desejo de
voltar a viver na cidade natal (foi criado em Bangu) colide o tempo todo com a
péssima qualidade dos serviços oferecidos pelos e para os brasileiros. A caixa
do supermercado precisa de uma calculadora para descobrir o troco de uma conta
de R$ 9,90 paga com uma nota de R$ 10. O garçom não consegue acertar nenhum
pedido. O motorista de táxi instalou um aparelho de GPS, mas não teve tempo de
aprender a usá-lo, talvez por passar a corrida inteira falando ao celular. Meu
amigo desconfia que algo muito grave aconteceu no Brasil enquanto esteve
trabalhando no exterior. Ele, então, batizou o que vê como um processo de
emburrecimento coletivo de “holocausto cognitivo”.
Cá no meu canto, acho que meu amigo exagera. Não quanto à existência desse
déficit de inteligência e atenção, que nos confronta praticamente a cada
interação social, mas quanto ao fato de ele ter acontecido entre a sua primeira
partida do Brasil e hoje — o que compreende, estimo, só os últimos dez, 12 anos.
O processo de emburrecimento coletivo me parece bem mais antigo. Se não o
inventou, a ditadura militar instaurada em 1964 o agudizou, seja pela censura à
<em>inteligentsia</em> e pela repressão ao debate seja pela deliberada
pauperização do ensino público. No entanto, a redemocratização iniciada em 1985
não reverteu o processo, ao menos não com a necessária urgência. Assim como no
caso da corrupção endêmica, a democracia só tornou o apagão educacional mais
visível.
Porque os especialistas podem divergir se o gasto estatal em Educação é ou
insuficiente ou mal administrado ou os dois — mas o holocausto cognitivo está
aí. Em parte porque estabeleceu-se em latifúndios do setor uma espécie de Lei de
Vampeta (“Eles fingem que pagam e eu finjo que treino”, frase de seus tempos de
Flamengo), na qual professores fingem que ensinam e alunos fingem que aprendem,
sem cobranças recíprocas. A ideia chegou ao paroxismo com a instituição da
“aprovação automática” na rede municipal carioca durante uma das gestões de
Cesar Maia. Outra daquelas boas intenções — diminuir a evasão escolar — que faz
o inferno botar gente pelo ladrão?
Os exemplos usados até agora (a caixa do supermercado, o garçom, o motorista
de táxi, a rede municipal carioca) podem sugerir erroneamente que a percepção de
um holocausto cognitivo nasce do elitismo, do preconceito de classe. Não. O
processo de emburrecimento — ou, ao menos, de preguiça mental — não afeta apenas
o ensino público ou as classes C, D e E, como bem sabe qualquer um que tenha
apurado o ouvido no Leblon ou no Jardim Europa. Generalizou-se no Brasil uma
espécie de conformismo com a leseira e a superficialidade. E, nos casos graves,
até um certo orgulho delas. Sim, este fenômeno é mundial, mas com consequências
devastadoras sobre um país que já costumava figurar na zona de rebaixamento dos
indicadores sociais e educacionais.
A quem interessa a manutenção deste estado de coisas? Aos detentores do poder
político, creio. Vítimas desse holocausto cognitivo estão menos preparadas não
só para fazer contas de cabeça, memorizar coisas e trabalhar em certas funções,
mas também para desenvolver uma consciência crítica que possa, depois de votar,
cobrar. O saber sempre foi subversivo. Pense em Sócrates ou em Galileu. É a
dúvida contínua que o saber instala — e não as certezas da ignorância — que leva
as pessoas adiante na vida.
Fico pensando se a própria tecnologia na qual o meu amigo trabalhou não
contribui de modo involuntário para o holocausto cognitivo. Para que saber fazer
contas de cabeça se basta um clique e uma calculadora se abre na tela? Para que
memorizar nomes, dados e fatos se todo o conhecimento da Humanidade cabe em um
<em>cacetobyte</em>? Ora, porque qualquer resultado de pesquisa depende das
dúvidas que o informam. Se não se souber de nada, não se saberá nem como
perguntar, não se saberá nem que não se sabe. Noto a tendência a se pensar a
memória apenas como uma especificação técnica de computador, como algo que basta
substituir pelo acesso ao Google. Não, não basta.

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