Durante cinco anos aquele casal
freqüentou aquela casa. Foi precisamente no início de 1994. O casal ligou e
solicitou um horário, pois desejava fazer uma doação em espécie. E na hora
marcada eles chegaram trazendo em sua companhia uma linda menina, muito bem
cuidada e educada. O casal era jovem, bonito, de boas maneiras, muito polido.
Apresentaram-se e pediram para conhecer a instituição e foram prontamente
atendidos. Feita a doação, apanharam o recibo e se despediram. Exatamente trinta
dias depois, eles ligaram e pediram para ser atendidos novamente. Na hora
marcada eles chegaram trazendo a menina novamente, sempre muito bem cuidada,
mas o pai, nessa entrevista, estava meio apático, e quem falou mais foi a jovem
esposa. Ela trouxe um questionário e pediu muita clareza nas respostas. Foi
atendida e ficou muito frustrada, não sabia que a casa sobrevivia da caridade
alheia, sem respaldo de prefeitura ou do governo estadual. E foi mais ou menos
nessa época que a primeira dama estadual manifestou desejo que colaborar com a
casa, assumindo a locação e construindo um novo prédio onde, com condições de
higiene e assistência médica e odontológica, as crianças pudessem viver com
dignidade. Se isso aconteceu por obra e iniciativa daquele casal nunca se
soube, o fato é que, na época, a casa já comportava trinta crianças. Algumas
senhoras que costumavam ajudar, em termos, não entenderam e ficaram
melindradas, pois a primeira dama do estado passou a cuidar, pessoalmente, da
agenda da casa e nunca procurou saber porque as senhoras em questão ficaram do
lado de fora e tão magoadas. Não mais sobrou espaço para as ilustres senhoras
que foram cantar em outra freguesia, mas durante esse tempo o casal colaborou
todos os meses com a instituição. Aos domingos eles chegavam carregados de
presentes e guloseimas para a sua menina brincas com as crianças da casa. A
menina fez amizades e era aguardada com ansiedade pelas companheiras. Ela não
estava freqüentando escola, era alfabetizada em casa pela mãe. O casal acompanhou
a construção da nova casa e ficou muito emocionado no dia de sua inauguração.
Na qualidade de colaboradores eles foram convidados. Naquele ano tudo correu às
maravilhas; o pai da menina era tão preocupado que logo passou a freqüentar a
instituição durante a semana, sempre levando alento, tanto para diretoria
quanto para as crianças. Eles chegaram a adotar uma das crianças. A adoção
consistia em se responsabilizar pela criança dando suporte financeiro e
emocional. Isto o jovem casal fez com muita competência. Ele era autônomo e sua
mulher deixou de dar aulas, após o nascimento da filha, para se dedicar
inteiramente ao bebê. Durante aqueles cinco anos, eles praticamente viveram a
vida da instituição. Eram queridos e respeitados por todos. Nunca falavam de
suas vidas, ou de seus projetos. A vida deles era protegida pela discrição dos
dois, coisa que contagiava quem estava por perto. Eles não mentiam, só omitiam.
A menina estava crescendo e chamava a todos de tio ou tia, e as coleguinhas de
irmãzinhas. Em 1997 eles apareceram pouco. Foi um ano de turbulência na
família, segundo eles, mas a menina contou para as irmãzinhas que sua mamãe
estava muito doente e que ficou no hospital fazendo tratamento, mas que já se
encontrava em casa. Contou ainda que a empregada estava cuidando de tudo e que
uma enfermeira estava cuidando de sua mamãe. No final do ano eles voltaram à
instituição para fazer o seu donativo e saber a quantas andava a ajuda
governamental. Todos notaram que a mãe da menina não estava bem; estava muito
magra e abatida. Naquele final de ano não levaram nem a afilhada para sua casa,
pediram desculpas e que outra pessoa assumisse o encargo. Em 1998 eles
apareceram logo depois das férias de verão. A mãe da menina já estava na
cadeira de rodas. Segundo disse estava se recuperando de uma doença nos
pulmões. Eles chegaram para fazer as doações, ficaram pouco tempo e partiram
deixando uma nuvem de preocupações no ar. O ano não foi fácil para aquele casal
e próximo às festas de natal, a mãe da menina não apareceu e o pai foi com a
filha levar as doações e os presentes. Ele se vestiu de Papai Noel e não passou
bem dentro da roupa. Foi o Papai Noel mais suado e cansado que já se viu.
Passou mal e alegou estar com estafa. No ano seguinte eles não apareceram, mas os
donativos foram entregues através do advogado do jovem casal, que fez questão
de levar pessoalmente e conhecer a instituição, no que foi atendido. No meio do
ano, eles ligaram para se desculpar, não poderiam hospedar a afilhada nas
férias do meio do ano. O inverno chegou e o jovem casal se recolheu até que no
finalzinho do ano eles voltaram para mais uma visita. Ela trouxe um motorista
para dirigir, ela estava muito fraca e o marido estava de cadeira de rodas.
Nesse dia ninguém teve dúvidas, o jovem casal estava doente, não dava sequer
para aquilatar quem partiria antes, se a jovem esposa ou o marido. No início do
ano eles chegaram com o advogado para conversar com a diretoria. Ficaram
durante duas longas horas reunidos e quando a porta abriu eles estavam chorando,
aliás, todos choravam. É que eles estavam tratando do futuro da filhinha deles.
Eles estavam vencidos pelo HIV, estavam cansados de bater e as portas se
fecharem para os três. E não encontrando solução dentro do núcleo familiar,
eles resolveram que o melhor para todos seria deixar a menina na instituição. O
advogado deixou a diretora como procuradora da menina. O jovem casal deixou
tudo o que pode amealhar para a sua filhinha. Estavam deixando o aluguel de
três imóveis que seriam depositados em poupança e uma quantia razoável, em
espécie, para que nada faltasse para sua menina. O jovem casal bateu em todas
as portas, nem os avós aceitaram a guarda da neta. A menina ficou com os pais
mais três meses e quando a mãe foi internada, já no final, o pai levou a filha
e seus pertences para viver na instituição, onde ela permaneceu até os dezoito
anos, e de onde saiu para tomar posse de seus bens. Ela se tornou uma criatura
amarga e vingativa. Não se apegava a ninguém. Seus pais foram sua memória
afetiva familiar e não teve mais ninguém para visitá-la ou saber se estava viva
ou morta. Não teve tratamento psicológico que resolvesse a sua vida. Até onde
se sabe, ela viveu loucamente escondendo a sua condição de soro positiva, e
namorava muito. Tornou-se uma moça muito bonita. Até onde se tem conhecimento,
ela continua fazendo acompanhamento médico e seus exames tem negativado. Ela
teve um tempo que seus pais não tiveram. Ela não quis estudar, não trabalha,
porque não quer que saibam de sua história. Está vivendo de rendas, sem se
preocupar com o dia seguinte. Dia seguinte para ela não existe. Não desenvolve
laços de ternura e nem tem amigos. Ela apenas usa a todos de uma forma que
beira a insanidade. A ultima noticia que tive dela foi de um cruzeiro de navio
pela costa brasileira. Segundo a amiga que foi paga para fazer companhia e que
era usada como escrava, porque estava sendo paga para isso, ela fez um guarda
roupa enorme para o tal cruzeiro, mas que passava o dia inteiro de biquínis
minúsculos e sandálias de salto bem alto para deixar o seu andar sexy. E que a
noite bebia até cair e sempre em companhias diferentes e más. Ela entrava na
cabine acompanhada e enxotava a acompanhante para ir dormir no convés. E que de
tanto dormir no relento, conheceu um oficial que se compadeceu da situação e
ficaram amigos. Agora eles estão namorando via interne, com o noivado marcado
para a próxima primavera. A moça em questão desconhece a verdadeira historia da
moça revoltada que não sabe que o mundo dá tantas voltas, está sempre a girar.
A instituição fechou suas portas em 2002 por falta de donativos e incentivo
governamental, o que foi lamentável. No local hoje funciona um posto de saúde.
Restaurandora
de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi
classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros
publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais
domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura,
cinema, e a paixão de escrever.
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