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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A dor de uma família - Nadia Fóes



Durante cinco anos aquele casal freqüentou aquela casa. Foi precisamente no início de 1994. O casal ligou e solicitou um horário, pois desejava fazer uma doação em espécie. E na hora marcada eles chegaram trazendo em sua companhia uma linda menina, muito bem cuidada e educada. O casal era jovem, bonito, de boas maneiras, muito polido. Apresentaram-se e pediram para conhecer a instituição e foram prontamente atendidos. Feita a doação, apanharam o recibo e se despediram. Exatamente trinta dias depois, eles ligaram e pediram para ser atendidos novamente. Na hora marcada eles chegaram trazendo a menina novamente, sempre muito bem cuidada, mas o pai, nessa entrevista, estava meio apático, e quem falou mais foi a jovem esposa. Ela trouxe um questionário e pediu muita clareza nas respostas. Foi atendida e ficou muito frustrada, não sabia que a casa sobrevivia da caridade alheia, sem respaldo de prefeitura ou do governo estadual. E foi mais ou menos nessa época que a primeira dama estadual manifestou desejo que colaborar com a casa, assumindo a locação e construindo um novo prédio onde, com condições de higiene e assistência médica e odontológica, as crianças pudessem viver com dignidade. Se isso aconteceu por obra e iniciativa daquele casal nunca se soube, o fato é que, na época, a casa já comportava trinta crianças. Algumas senhoras que costumavam ajudar, em termos, não entenderam e ficaram melindradas, pois a primeira dama do estado passou a cuidar, pessoalmente, da agenda da casa e nunca procurou saber porque as senhoras em questão ficaram do lado de fora e tão magoadas. Não mais sobrou espaço para as ilustres senhoras que foram cantar em outra freguesia, mas durante esse tempo o casal colaborou todos os meses com a instituição. Aos domingos eles chegavam carregados de presentes e guloseimas para a sua menina brincas com as crianças da casa. A menina fez amizades e era aguardada com ansiedade pelas companheiras. Ela não estava freqüentando escola, era alfabetizada em casa pela mãe. O casal acompanhou a construção da nova casa e ficou muito emocionado no dia de sua inauguração. Na qualidade de colaboradores eles foram convidados. Naquele ano tudo correu às maravilhas; o pai da menina era tão preocupado que logo passou a freqüentar a instituição durante a semana, sempre levando alento, tanto para diretoria quanto para as crianças. Eles chegaram a adotar uma das crianças. A adoção consistia em se responsabilizar pela criança dando suporte financeiro e emocional. Isto o jovem casal fez com muita competência. Ele era autônomo e sua mulher deixou de dar aulas, após o nascimento da filha, para se dedicar inteiramente ao bebê. Durante aqueles cinco anos, eles praticamente viveram a vida da instituição. Eram queridos e respeitados por todos. Nunca falavam de suas vidas, ou de seus projetos. A vida deles era protegida pela discrição dos dois, coisa que contagiava quem estava por perto. Eles não mentiam, só omitiam. A menina estava crescendo e chamava a todos de tio ou tia, e as coleguinhas de irmãzinhas. Em 1997 eles apareceram pouco. Foi um ano de turbulência na família, segundo eles, mas a menina contou para as irmãzinhas que sua mamãe estava muito doente e que ficou no hospital fazendo tratamento, mas que já se encontrava em casa. Contou ainda que a empregada estava cuidando de tudo e que uma enfermeira estava cuidando de sua mamãe. No final do ano eles voltaram à instituição para fazer o seu donativo e saber a quantas andava a ajuda governamental. Todos notaram que a mãe da menina não estava bem; estava muito magra e abatida. Naquele final de ano não levaram nem a afilhada para sua casa, pediram desculpas e que outra pessoa assumisse o encargo. Em 1998 eles apareceram logo depois das férias de verão. A mãe da menina já estava na cadeira de rodas. Segundo disse estava se recuperando de uma doença nos pulmões. Eles chegaram para fazer as doações, ficaram pouco tempo e partiram deixando uma nuvem de preocupações no ar. O ano não foi fácil para aquele casal e próximo às festas de natal, a mãe da menina não apareceu e o pai foi com a filha levar as doações e os presentes. Ele se vestiu de Papai Noel e não passou bem dentro da roupa. Foi o Papai Noel mais suado e cansado que já se viu. Passou mal e alegou estar com estafa. No ano seguinte eles não apareceram, mas os donativos foram entregues através do advogado do jovem casal, que fez questão de levar pessoalmente e conhecer a instituição, no que foi atendido. No meio do ano, eles ligaram para se desculpar, não poderiam hospedar a afilhada nas férias do meio do ano. O inverno chegou e o jovem casal se recolheu até que no finalzinho do ano eles voltaram para mais uma visita. Ela trouxe um motorista para dirigir, ela estava muito fraca e o marido estava de cadeira de rodas. Nesse dia ninguém teve dúvidas, o jovem casal estava doente, não dava sequer para aquilatar quem partiria antes, se a jovem esposa ou o marido. No início do ano eles chegaram com o advogado para conversar com a diretoria. Ficaram durante duas longas horas reunidos e quando a porta abriu eles estavam chorando, aliás, todos choravam. É que eles estavam tratando do futuro da filhinha deles. Eles estavam vencidos pelo HIV, estavam cansados de bater e as portas se fecharem para os três. E não encontrando solução dentro do núcleo familiar, eles resolveram que o melhor para todos seria deixar a menina na instituição. O advogado deixou a diretora como procuradora da menina. O jovem casal deixou tudo o que pode amealhar para a sua filhinha. Estavam deixando o aluguel de três imóveis que seriam depositados em poupança e uma quantia razoável, em espécie, para que nada faltasse para sua menina. O jovem casal bateu em todas as portas, nem os avós aceitaram a guarda da neta. A menina ficou com os pais mais três meses e quando a mãe foi internada, já no final, o pai levou a filha e seus pertences para viver na instituição, onde ela permaneceu até os dezoito anos, e de onde saiu para tomar posse de seus bens. Ela se tornou uma criatura amarga e vingativa. Não se apegava a ninguém. Seus pais foram sua memória afetiva familiar e não teve mais ninguém para visitá-la ou saber se estava viva ou morta. Não teve tratamento psicológico que resolvesse a sua vida. Até onde se sabe, ela viveu loucamente escondendo a sua condição de soro positiva, e namorava muito. Tornou-se uma moça muito bonita. Até onde se tem conhecimento, ela continua fazendo acompanhamento médico e seus exames tem negativado. Ela teve um tempo que seus pais não tiveram. Ela não quis estudar, não trabalha, porque não quer que saibam de sua história. Está vivendo de rendas, sem se preocupar com o dia seguinte. Dia seguinte para ela não existe. Não desenvolve laços de ternura e nem tem amigos. Ela apenas usa a todos de uma forma que beira a insanidade. A ultima noticia que tive dela foi de um cruzeiro de navio pela costa brasileira. Segundo a amiga que foi paga para fazer companhia e que era usada como escrava, porque estava sendo paga para isso, ela fez um guarda roupa enorme para o tal cruzeiro, mas que passava o dia inteiro de biquínis minúsculos e sandálias de salto bem alto para deixar o seu andar sexy. E que a noite bebia até cair e sempre em companhias diferentes e más. Ela entrava na cabine acompanhada e enxotava a acompanhante para ir dormir no convés. E que de tanto dormir no relento, conheceu um oficial que se compadeceu da situação e ficaram amigos. Agora eles estão namorando via interne, com o noivado marcado para a próxima primavera. A moça em questão desconhece a verdadeira historia da moça revoltada que não sabe que o mundo dá tantas voltas, está sempre a girar. A instituição fechou suas portas em 2002 por falta de donativos e incentivo governamental, o que foi lamentável. No local hoje funciona um posto de saúde.



Restaurandora de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura, cinema, e a paixão de escrever.

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