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terça-feira, 13 de setembro de 2011

Uma outra Índia, por Cora Rónai

  
“Mamãe, me explica uma coisa: como é que você pode gostar da Índia?!” Do outro lado do telefone estava o Paulinho, meu filho mais velho, que mora nos Estados Unidos e levou a família para passar umas semanas no Oriente. “Que lugar miserável, sujo, insuportável!”

Ele passou dois dias em Mumbai, a caminho do Sri Lanka.

“Eu juro que não reclamo mais da segurança nos aeroportos americanos! Em Mumbai quase me fizeram tirar a roupa, abriram o sapato, tiraram a palmilha do sapato, inspecionaram cada fio dos conectores, cada cabo, cada computador…”

Paulinho tem uma pequena empresa de software, estava a trabalho e levava, imagino, pelo menos dois notebooks, mais uma quantidade de tablets e smartphones. É muito cabo. Eu viajo com metade do equipamento que ele leva e, volta e meia, tenho ímpetos assassinos.

“Quem não vai viajar não pode entrar no aeroporto. Pois quando a gente sai, tem cinco mil caras esperando, uns com placas, outros sem, todos aos gritos. Não digo cinco mil como figura de linguagem não, digo cinco mil numericamente falando. Felizmente o cara do hotel era safo, viu os dois branquelos grandes com três branquelos pequenos e deduziu que éramos nós. De modo que fomos para o hotel, no carro do hotel, e, mesmo assim, quando chegamos, o carro foi todo revistado, espelhinho por baixo, capô aberto, bagagens mais uma vez reviradas. Sinceramente, perto da chegada a Mumbai a chegada a Miami é sopa!”

Não estive em Mumbai ainda, e a minha chegada a Nova Delhi foi indizivelmente facilitada porque me esperavam no aeroporto os meus amigos queridos, embaixadores de Portugal. Tive uma amostra boa da segurança e da confusão de uma chegada à Índia quando voltei do Nepal. Mas aí já estava apaixonada pelo país e tudo me parecia pitoresco e interessante.

“Saímos para dar uma volta e desistimos logo. A umidade gruda em você como um visco, tudo é absolutamente imundo. Nas esquinas há montanhas de lixo sendo cavucadas por crianças e animais, é uma coisa horrível de se ver. Já vi muita miséria na vida, mas nunca vi nada igual àquilo lá.”

Paulinho conhece o Brasil todo e, a cada verão, parte das férias das crianças é passada numa cidadezinha miserável do México onde, com um grupo de amigos, está ajudando os habitantes de uma favela a construírem casas dignas do nome. Eles viajam em caminhões de transporte, cheios de material de construção. As crianças ajudam, na medida da sua capacidade: oferecem água e comida aos adultos, separam materiais, essas coisas. Paulinho não quer que as crianças cresçam com a ilusão de que todo mundo tem a sua qualidade de vida.

Não vi este nível de miséria na Índia. Nas cidades que visitei vi, ao contrário, uma miséria menos degradante do que a miséria brasileira, por ser uma miséria operosa: todos estavam envolvidos em atividades de algum tipo, fosse confeccionando pequenas peças de artesanato, fosse comerciando toda a sorte de coisas. Me lembro de um vendedor de fitas cassete quebradas, que vi no mercado de Jodhpur. Tentei descobrir quem comprava aquilo, e para que poderia servir, mas o inglês dele era ínfimo e o meu guia já estava a duas quadras de distância. De modo que morrerei sem desvendar esse mistério.

“Eu ia vendo aquele horror, sentindo aquele fedor, e pensando, Meu Deus, como é que nós vamos conseguir sobreviver, com três crianças, num lugar ainda pior do que esse? Eu estava pensando errado, naturalmente. Imaginava que, por ser um país mais pobre, o Sri Lanka seria ainda mais sujo e mais miserável. Mas quando chegamos a Colombo, foi uma felicidade. O país é de fato pobre, mas tudo é limpo e bonito. É como se as pessoas dissessem, Isso é tudo o que temos, mas é nosso, e gostamos do que temos. Então mesmo na casinha mais humilde há uma lata com flores plantadas. Viajamos pelo interior e o cheiro do país é delicioso, uma mistura de chá, principal plantação deles, e daquelas frutas que só existem por aquelas bandas. E que chá delicioso! Fiquei com muita pena de não ter ido antes, e mais pena ainda de não ter ficado mais tempo.”

O ponto alto da viagem, em sentidos literal e figurado, foi um passeio de elefante pela selva. A primeira providencia dos elefantes, ao entrar num córrego de águas clarinhas, foi dar um banho em todo mundo. No fim do passeio, pediram o troco deitando-se no riacho; os tratadores deram pedaços de casca de coco para que as crianças se jogassem na água e esfregassem os bichos, que demonstraram grande prazer com a faxina. Os adultos foram atrás, e lá ficaram, todos os cinco, se deliciando em escovar paquidermes.

* * *

Fiquei desapontada com a experiência indiana do Paulinho. Gostaria que ele tivesse sentido pelo país dos meus sonhos o mesmo encanto que eu senti. É claro que ficou pouquíssimo tempo, e na estação errada. Pode ser que, um dia, venha a mudar essa má impressão, mas, em geral, quem não gosta de um país dificilmente voltará a visitá-lo, a menos que seja levado pelas circunstâncias.

Vou conhecer Mumbai no fim desse ano, e vou ter uma idéia melhor da cidade. Por enquanto, tudo o que eu sei, e que é muita coisa, li em “Cidade máxima”, livro extraordinário de Suketu Mehta, que acaba de sair no Brasil pela Companhia das Letras. Ainda vou escrever mais a respeito dessa obra-prima, mas, desde já, fica a recomendação: quando passarem por uma livraria, não se esqueçam de comprá-lo. É dos melhores livros que já li na vida.  


(O Globo, Segundo Caderno, 14.7.2011)

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