“Mamãe,
me explica uma coisa: como é que você pode gostar da Índia?!” Do outro
lado do telefone estava o Paulinho, meu filho mais velho, que mora nos
Estados Unidos e levou a família para passar umas semanas no Oriente.
“Que lugar miserável, sujo, insuportável!”
Ele passou dois dias em Mumbai, a caminho do Sri Lanka.
“Eu
juro que não reclamo mais da segurança nos aeroportos americanos! Em
Mumbai quase me fizeram tirar a roupa, abriram o sapato, tiraram a
palmilha do sapato, inspecionaram cada fio dos conectores, cada cabo,
cada computador…”
Paulinho
tem uma pequena empresa de software, estava a trabalho e levava,
imagino, pelo menos dois notebooks, mais uma quantidade de tablets e
smartphones. É muito cabo. Eu viajo com metade do equipamento que ele
leva e, volta e meia, tenho ímpetos assassinos.
“Quem
não vai viajar não pode entrar no aeroporto. Pois quando a gente sai,
tem cinco mil caras esperando, uns com placas, outros sem, todos aos
gritos. Não digo cinco mil como figura de linguagem não, digo cinco mil
numericamente falando. Felizmente o cara do hotel era safo, viu os dois
branquelos grandes com três branquelos pequenos e deduziu que éramos
nós. De modo que fomos para o hotel, no carro do hotel, e, mesmo assim,
quando chegamos, o carro foi todo revistado, espelhinho por baixo, capô
aberto, bagagens mais uma vez reviradas. Sinceramente, perto da chegada a
Mumbai a chegada a Miami é sopa!”
Não
estive em Mumbai ainda, e a minha chegada a Nova Delhi foi
indizivelmente facilitada porque me esperavam no aeroporto os meus
amigos queridos, embaixadores de Portugal. Tive uma amostra boa da
segurança e da confusão de uma chegada à Índia quando voltei do Nepal.
Mas aí já estava apaixonada pelo país e tudo me parecia pitoresco e
interessante.
“Saímos
para dar uma volta e desistimos logo. A umidade gruda em você como um
visco, tudo é absolutamente imundo. Nas esquinas há montanhas de lixo
sendo cavucadas por crianças e animais, é uma coisa horrível de se ver.
Já vi muita miséria na vida, mas nunca vi nada igual àquilo lá.”
Paulinho
conhece o Brasil todo e, a cada verão, parte das férias das crianças é
passada numa cidadezinha miserável do México onde, com um grupo de
amigos, está ajudando os habitantes de uma favela a construírem casas
dignas do nome. Eles viajam em caminhões de transporte, cheios de
material de construção. As crianças ajudam, na medida da sua capacidade:
oferecem água e comida aos adultos, separam materiais, essas coisas.
Paulinho não quer que as crianças cresçam com a ilusão de que todo mundo
tem a sua qualidade de vida.
Não
vi este nível de miséria na Índia. Nas cidades que visitei vi, ao
contrário, uma miséria menos degradante do que a miséria brasileira, por
ser uma miséria operosa: todos estavam envolvidos em atividades de
algum tipo, fosse confeccionando pequenas peças de artesanato, fosse
comerciando toda a sorte de coisas. Me lembro de um vendedor de fitas
cassete quebradas, que vi no mercado de Jodhpur. Tentei descobrir quem
comprava aquilo, e para que poderia servir, mas o inglês dele era ínfimo
e o meu guia já estava a duas quadras de distância. De modo que
morrerei sem desvendar esse mistério.
“Eu
ia vendo aquele horror, sentindo aquele fedor, e pensando, Meu Deus,
como é que nós vamos conseguir sobreviver, com três crianças, num lugar
ainda pior do que esse? Eu estava pensando errado, naturalmente.
Imaginava que, por ser um país mais pobre, o Sri Lanka seria ainda mais
sujo e mais miserável. Mas quando chegamos a Colombo, foi uma
felicidade. O país é de fato pobre, mas tudo é limpo e bonito. É como se
as pessoas dissessem, Isso é tudo o que temos, mas é nosso, e gostamos
do que temos. Então mesmo na casinha mais humilde há uma lata com flores
plantadas. Viajamos pelo interior e o cheiro do país é delicioso, uma
mistura de chá, principal plantação deles, e daquelas frutas que só
existem por aquelas bandas. E que chá delicioso! Fiquei com muita pena
de não ter ido antes, e mais pena ainda de não ter ficado mais tempo.”
O
ponto alto da viagem, em sentidos literal e figurado, foi um passeio de
elefante pela selva. A primeira providencia dos elefantes, ao entrar
num córrego de águas clarinhas, foi dar um banho em todo mundo. No fim
do passeio, pediram o troco deitando-se no riacho; os tratadores deram
pedaços de casca de coco para que as crianças se jogassem na água e
esfregassem os bichos, que demonstraram grande prazer com a faxina. Os
adultos foram atrás, e lá ficaram, todos os cinco, se deliciando em
escovar paquidermes.
* * *
Fiquei desapontada com a experiência indiana do Paulinho. Gostaria que ele tivesse sentido pelo país dos meus sonhos o mesmo encanto que eu senti. É claro que ficou pouquíssimo tempo, e na estação errada. Pode ser que, um dia, venha a mudar essa má impressão, mas, em geral, quem não gosta de um país dificilmente voltará a visitá-lo, a menos que seja levado pelas circunstâncias.
Vou
conhecer Mumbai no fim desse ano, e vou ter uma idéia melhor da cidade.
Por enquanto, tudo o que eu sei, e que é muita coisa, li em “Cidade
máxima”, livro extraordinário de Suketu Mehta, que acaba de sair no
Brasil pela Companhia das Letras. Ainda vou escrever mais a respeito
dessa obra-prima, mas, desde já, fica a recomendação: quando passarem
por uma livraria, não se esqueçam de comprá-lo. É dos melhores livros
que já li na vida.
(O Globo, Segundo Caderno, 14.7.2011)
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