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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O Herdeiro, por Nadia Foes


A casa antiga do povoado ficara fechada durante algum tempo. A família se transferiu para a cidade grande. Passados alguns anos o herdeiro do imóvel chegou de volta à cidade, se aproximou da praça central com um carro importado dos mais luxuosos e trouxe na bagagem uma bela mulher e o cão, um belíssimo Afeganistão bege. Chegaram para implantar um projeto que traria dividendos ao povoado. Era algo relacionado à pesca de rio, pois parte do rio cortava as terras da família. E o povoado ficou em polvorosa, pois todos iam ganhar. Do dono do boteco até o padre que lembrou que a igreja carecia de um sino. E o projeto entrou em andamento. Ele recuperou a casa grande que ficara fechada durante muito tempo, abriu um escritório na frente da praça, contratou empregados para ajudar a sua mulher; era um jardineiro e uma senhora, parentes do jardineiro, e dos filhos que moravam na parte dos fundos da casa. E logo a reforma da casa e os jardins ficaram uma beleza e passaram a receber todos os que chegavam ao povoado para conhecerem o empreendimento. Até um hotel seria construído. Dinheiro para isso ele possuía e foram longos meses de muitas viagens para conseguir permissão dos órgãos competentes para usar, não só a faixa do rio que cortava as suas terras, mas também a faixa do rio que contornava a cidade e fazia um meandro em direção à igreja. Depois de “molhar” as mãos de muitos dignitários, a documentação necessária para iniciar o empreendimento deslanchou. Foi tudo ao mesmo tempo, e a cidade virou um canteiro de obras. Já não era mais um simples povoado. Aos poucos foram chegando os investidores. Como o complexo seria voltado à pesca de entretenimento no rio, chegaram os organizadores de eventos e foram se instalando aonde dava. O dono do boteco colocou a família, mulher e filhos, no rancho e alugou os quartos da pequena morada. Até a casa do padre hospedou alguns forasteiros. Todos queriam se instalar na cidade e cada qual ganhar o seu quinhão. E no meio de tanto movimento, chegaram as senhoritas de vida fácil. Isto é o que dizem, pois, particularmente, acho a vida delas muito difícil. E aí aconteceu de aparecer na cidade um maluco, que veio a serviço das distintas senhoritas. Era o “faz-tudo” delas e gostava de se embebedar. E o investidor, tão assoberbado com toda a correria, mal chegava em casa; virou visita. E a jovem mulher dele que viera de uma família muito tradicional e sem qualquer mácula - coisa muito difícil nestes tempos cabeludos – andava tão solitária que foi passar uns tempos com a família dela e lá aproveitou e foi até o colégio onde estudara fazer uma visita muito especial: uma freira muito afeiçoada a ela. E logo que ela chegou a freira notou que algo não ia bem, e ela desabafou: não tinha amigos, vivia isolada, e que a vida não ia tão bem assim. E a freira perguntou: porque ela não dava aulas na cidade? Seria o ideal, afinal ela era professora, e logo em seguida deveria arranjar uma gravidez, o filho viria preencher o vazio da vida dela. Ela voltou mais conformada. Na chegada falou com o marido da idéia de abrir uma escola, chegou até sugerir que a escola poderia ter o nome da senhora mãe dele, já falecida, e ele ficou de pensar no assunto e não se falou mais nisso. E ela passava os dias de tagarelice com os empregados da casa e as visitas de final de semana. Como estava decidida a ter um filho, o marido a escutou, saiu, tomou um pileque, e chegou em casa carregado pois batera o carro. A mulher que estava em companhia dele foi para o hospital mais próximo, mas disso a mulher dele nunca soube e tratou, com a ajuda do jardineiro, de cuidar dos ferimentos dele. E os dois foram se revezando nos cuidados, até que, certa noite, ele já estava melhor, e como fazia muito calor, ela foi se banhar no rio e o empregado ficou observando a distancia. Foi quando o marido dela viu e disse: então, anda de olho na minha mulher, seu safado! O rapaz tratou de desfazer o equivoco e foi para o quarto dele. Na manhã seguinte era dia de dar banho e escovar o cachorro que era o xodó dela e o orgulho do marido, pois tanto o cão, quanto o carro, chamavam a atenção aonde chegavam. Ele costumava sair com o cão dentro do carro e estacionava na praça e quando olhava tinha uma aglomeração em torno dos dois, do carro e do cão. E ele se fazia de surpreso e chamava a todos para assistir o espetáculo e o rapaz caprichava na escovação do pêlo do animal. Depois do dia do incidente com o banho da patroa ele pouco subia na varanda da casa onde ela costumava ficar lendo ou bordando, e sempre gostava de mostrar o que estava fazendo. Certa noite, ela chamou o rapaz e pediu a ele que preparasse uma bebida para os dois e viesse conversar um pouco com ela. Ele preparou a bebida dela, se desculpou e desceu. Na semana seguinte o marido foi viajar novamente e recomendou: nada de folga com o empregado, essa gente tem que ser tratada só na chibata. Ela não se importou com o comentário do marido e os dias foram se tornando mais quentes e ela passou a tomar banho de rio todas as tardes ao anoitecer porque era mais fresco. Vestia uma túnica leve sobre o maiô e ia para o rio tomar banho. Na volta, o marido chegou exatamente quando ela acabara de chegar na casa. Depois de cumprimentar o marido, chamou o empregado, esperou o rapaz subir para receber as ordens da patroa: era para trazer um balde de gelo e algo para comer enquanto ela ia se arrumar. Quando ela virou as costas o marido deu uma pancada na cabeça do rapaz e jogou o pobre coitado pelo balaustre da varanda e o rapaz fraturou o pulso e o joelho. Quando ela ouviu o barulho e veio correndo, o rapaz estava estirado no jardim e parecia morto e o marido dela o estava socorrendo e dizia: ele é maluco, pulou da varanda. Ela foi ajudá-lo e colocou o rapaz numa sala próxima à cozinha e pediu ao marido: vá buscar ajuda. Ele saiu e demorou a voltar. Quando chegou disse que não encontrara ninguém que entendesse medicina no povoado. Como ela aprendera algo sobre primeiros socorros, passou a cuidar do empregado pessoalmente até ele se restabelecer; ficou manco de uma perna e o marido passou a chamá-lo de aleijado. E o pulso também ficou com seqüelas. O verão estava chegando ao final e um vento frio começou a soprar e ela se recolheu, passou a ficar na sala, com a lareira acesa, todas as janelas fechadas e o marido, mais uma vez, foi viajar. Desta vez foi para ficar mais tempo. E ela contratou mais uma ajudante. Até que certa noite, já madrugada, ela sentiu alguém entrar no quarto e meio sonolenta ela abraçou o marido e pediu: vamos ter um filho? E foi uma noite de paixão. No dia seguinte ela não saiu da cama cedo, só desceu na hora do almoço e perguntou para o rapaz: onde foi o meu marido? Ele respondeu: ele está viajando, não voltou ainda. Aí ela pensou no sonho que teve e ficou preocupada com sua saúde mental. Subiu e foi examinar a cama, estava com roupa limpa, a nova empregada havia trocado tudo. Ela foi tomar outro banho, não notou qualquer marca diferente em seu corpo e pensou: realmente um sonho que eu tive. Passado alguns dias o marido chegou e ela começou a amanhecer enjoada, já não comia de tudo e achou melhor viajar para consultar um médico. Fez os exames e o médico deu-lhe a notícia: você está grávida. E ela disse: isso é impossível. E chorando, explicou que o marido não tocava em seu corpo há muito tempo, ele estava sempre cansado, mas o médico afirmou: é gravidez. Ela voltou para casa, chegou cansada e o marido não se encontrava. O rapaz veio tirar as bagagens do carro e levou para o quarto dela. Ela entrou no banho e lavou até a alma e ao entrar no quarto, o rapaz ainda estava lá. E ela perguntou: o que você quer? Ele não respondeu nada e saiu do quarto. Ela desceu para jantar e esperou até tarde da noite, e, naquela noite, o marido não voltou. Pela madrugada ela acordou com alguém dentro do quarto e silenciosamente esperou. Ele deitou na cama ao seu lado e a abraçou com tanto carinho que ela se deixou ficar e amar. E depois do amor ela perguntou: foi você na outra noite? Ele respondeu que sim. Que desde que o marido dela chamou a atenção dele por estar olhando para ela, até então ele não havia enxergado a mulher, mas daquele momento em diante, ela não saiu mais do seu coração e ela sentiu exatamente a mesma coisa. Disse que desde que o marido dissera que esta gente tem que ser tratada na chibata, no subconsciente ela só pensara nele e no tórax largo e forte que ele tinha. Aí ela lhe disse: vou ter um filho teu. Despediram-se, ele foi para o quartinho dos fundos da casa e ela, de camisola branca, saiu caminhando pela rua rumo ao meandro e lá ela entrou na água e foi afundando tão devagar, pois sabia que carregava no ventre um anjo, o fruto de uma violação, que poderia nascer mulato, o marido era loiro, e ela castanha de pele muito branca. Quando o dia amanheceu, viram um tecido boiando e foram ver o que era; era um pedaço da camisola de renda que flutuava. Procuraram o dia inteiro, a turma de buscas encontrou o seu corpo que estava preso em umas madeiras que estavam boiando e alguns galhos de árvore que pareciam enlaçar o seu corpo e seus braços rígidos embalavam o ventre como uma mãe protegendo o filho. Ela foi levada para a cidade mais próxima para ser preparada para voltar para sua gente e o médico, ao dar o atestado de óbito, perguntou ao marido, que se encontrava junto a um amigo que lhe dera carona, se ela estava grávida. O marido disse que não. O medico a examinara e disse, uma gravidez de 90 dias aproximadamente. Ele ficou enlouquecido e disse: mato aquele desgraçado! E pediu para voltar para casa. Lá chegando, encontrou o cão morto com uma punhalada certeira e ao lado do cão, com um tiro de espingarda na cabeça, jazia o corpo do jardineiro, o do tipo que só na chibata se resolveria, o do homem que ele jogou da sacada e passou a chamar de aleijado. Olhou para o corpo do rapaz e ele parecia sorrir e lembrou dela morta enlaçando o ventre e também parecia sorrir. E o carro dele, na garagem, estava destroçado, a lataria fora toda cortada, o motor arrancado e incendiado, os estofamentos de couro só a base metálica sobrou. Foi a maior vingança que já se viu naquele povoado. E aí vem a lembrança dos antigos que dizia: se não podes com o dono, vingue-se no cão. Ele vingou a sua amada e o prepotente e orgulhoso patrão perdeu a mulher, o cão e o carro, pois o jardineiro sabia que ele ia morrer mesmo, era apenas questão de horas. E ele, no desespero, se resolveu mais rápido. Quanto ao empreendimento, ficou tudo pelo começo. Ninguém teve o dinheiro para dar continuidade no que seria o crescimento da cidade, e os forasteiros que investiram lá, perderam tudo. O povoado continua como no início, tem uma praça, uma igreja, um meandro e um boteco. As ruas, sem calçamento algum, casinhas modestas. E a margem esquerda do meandro, o caminho que leva à casa grande, que hoje está caindo por falta de conservação, e o investidor, o dono do dinheiro, o desajustado, o adulto rebelde, esse nunca mais foi visto. O padre, na última viagem que fez à capital, foi fazer uma visita aos pais da falecida. Estavam inconformados com a fatalidade. Para eles, ela foi se banhar a noite, como costumava fazer, e ficou presa nos galhos. Tão jovem e trazia um anjo no ventre. Os pais não se conformavam de perder a filha e o neto. Mas o funcionário do bordel, o maluco, esse disse ter visto ela passar de camisola rumo ao meandro e o padre não contestou. Perguntou pelo viúvo e os pais da moça disseram que a dor foi tão grande pela perda da mulher e do filho que se tornara um alcoólatra – isso ele também já era – e desapareceu, foi viajar e não mais voltou. Mas, no povoado, conta-se que ele foi visto em outra cidade pequena, passeando com uma das moças damas do bordel, que também foi dado por desaparecida e que estavam a bordo de um carro ainda mais luxuoso que o outro e pararam para almoçar em um restaurante da praça e pagaram o funcionário da casa para dar voltas na praça com dois cães, um macho e uma fêmea. O macho usava uma coleira de couro marrom com uma placa de outro amarelo com o nome do animal e do proprietário e a fêmea usava uma coleira preta cravejada de diamantes e uma placa em forma de coração também com o nome dela e do proprietário. Isso é o boato que está correndo, mas até o padre acredita ter visto os dois e tentou alcançá-los, mas o carro deles era muito veloz. E conta-se, também, que alguém veio, pagou os empregados, fechou a garagem com os traços que sobraram do carro, que as roupas foram distribuídas para os carentes e a casa foi fechada. Já não se pode chegar sequer na entrada principal que fica próximo do meandro, tal o matagal que está cobrindo tudo. E o povoado vive na maior miséria e dizem que em noite de lua cheia os três choram horas e horas, ela, ele e o bebê. E o cão passa a noite a ladrar. Todos já saíram em busca na cidade para ver de onde vem o som e o som vem do rio. O padre já benzeu a casa, rezou missa, mas nada adianta, o lamento deles é muito triste.
Restaurandora de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura, cinema, e a paixão de escrever.

Um comentário:

Beth disse...

Muito linda a história. Envolvente.
Beth