Houve um tempo que o brasileiro não gostava
de ser brasileiro. Ele queria ser europeu; mais adiante quis ser americano.
Algumas pessoas, naquela época, sonhavam com sobrenome europeu, mais
precisamente francês. Quem não possuía nome ou sobrenome francês por conta de
seus ancestrais, tratava de acrescentar, na assinatura, no início ou no meio,
um nomezinho francês. Pois a professora Raymonde teve a felicidade de ter
prenome francês e ainda acrescentou um sobrenome lá no final de sua assinatura,
também francês. E como era professora de francês no ginásio, sentia-se mais
próxima da França, embora jamais tenha colocado o seu pé em território francês.
Ela adquiriu hábitos e maneiras da cultura francesa que repassou para suas duas
filhas. Casou muito tarde com um funcionário público quase aposentado. Vivia
modestamente na casa que foi de seus pais. Seu pai fora dono de uma pequena
venda e morava nos fundos, onde Raymonde nasceu solteirona, pois foi morar com
seus pais. Com o falecimento deles ela continuou na casa. Seu único luxo com a
edificação era uma pintura a cal, uma caiação mesmo, no final do ano,
normalmente perto do Natal. A casa era pintada de branco, com as portas e
janelas azuis. Segundo ela a casa era estilo colonial, porém o mobiliário era
da época de cinqüenta – tudo pé palito. Era um horror. Foi nessa casa que
nasceram suas duas filhas, meninas lindas. Raymonde dava aulas particulares
para engordar o porquinho. Não recebia visitas com a desculpa que estava
redecorando a casa, porém freqüentava muito. Não perdia um casamento, uma
festa, um aniversário, um baile da vida. Suas filhas eram educadas e
encaminhadas para fazer casamentos brilhantes, porém o que existia na época, em
termos de bom partido, eram os funcionários do Banco do Brasil. Foi uma leva de
jovens que chegou na cidade para trabalhar no banco e foram recebidos de
braços, portas e janelas abertas. O que as mães da época não faziam para casar
suas filhas com um desses partidões! E a maioria das meninas da época acabou
casando com os bonitões. Raymonde mantinha a pose e quando sua filha mais velha
se casou, e como quase ninguém na cidade possuía carrão, a moça foi a pé para a
igreja e lançou a moda de servir bolo no salão paroquial, só que a moda não
vingou. Sua filha tinha estilo. Na época em que Brigite Bardot lançou Búzios no
calendário da moda e usava vestidinhos esvoaçantes xadrezinhos, a filha de Raymonde
copiou todos os modelos. Explica-se, era econômico. A segunda filha de Raymonde
despontou mais cedo na vida social. Ela era linda, charmosa e seu lançamento
não foi triunfal como o de sua irmã e quando debutou foi vestida de rainha. O
vestido era de veludo branco com uma imensa gola de lontra branca. A debutante
foi carregada para o baile em plataforma de madeira, com quatro rodas de
borracha, puxada por moleques vestidos como os moleques de Debret. Esse
acontecimento ocorreu na década de cinqüenta. Todas as janelas das casas se
abriram para ver a debutante passar. Os moleques de Debret conduziram a
debutante e ajudaram-na subir as escadas devido ao peso do vestido. E após a
missão cumprida foram brincar com a plataforma no mercado até as quatro horas
da madrugada que foi a hora marcada para a saída do baile. Ficar até o final,
nem pensar. Na opinião de Raymonde não era chique. Na hora marcada para saída
do baile os moleques estavam a postos. Tudo isso só para a debutante não sujar
o vestido nas calçadas. Quando a segunda filha despontou já não se faziam
bailes de debutantes anual. Os bailes eram de cinco em cinco anos e a média de
idade das debutantes eram entre 13 e 17 anos. O espaço de espera era longo
demais. A bela apareceu pela primeira vez no baile anual da padroeira do
Estado. Era uma festa concorrida, tinha novena, tinha quermesse e o ponto alto
era o baile. Era muito chique. E foi nesse baile que a segunda filha de Raymonde
apareceu e arrasou. Menina inteligente, também fazia gênero, era estilosa.
Usava todos os modelitos de famosa atriz juvenil da época. Tudo o que a
bonequinha de luxo usava ela copiava. Na época, toda mocinha possuía sua estola
de pele comprada na peleteria Michel que era famosa. Umas usavam caldinha de
vison, outras lontras. A filha de Raymonde usava uma de pluminha. Raymonde
levou meses comprando tirinhas de arminho em metro que se usava para guarnecer
roupas de anjo em procissão e costurou todas as tiras. Foi um trabalho e tanto.
E fazia efeito, porém próxima das outras, era um desastre. Mas a menina era
inteligente e gostava de brincar soprando as penugens que grudava no laquê, nos
vestidos, nas roupas das amigas. Mas o fato dela soprar a penugem, aquele gesto
ela fazia com tanta graciosidade que todos acabavam achando graça. Sua vida
social foi efêmera, logo começou a namorar um jovem de origem libanesa, muito
rico. Sua família era do ramo de hotelaria. Dizem que o casamento foi suntuoso
e que a noiva estava linda, magnífica, porém, como foi patrocínio da família do
noivo, a festa, a cerimônia, o vestido da noiva, os amigos da família da noiva
ficaram de fora. Só compareceu a colônia libanesa e, por muito favor, o pai, a
mãe, a irmã da noiva e o marido. E aí foi o ponto final, ela casou aos
dezessete anos; aos dezoito já era mãe e pariu cinco filhos durante seis anos.
Aos vinte e três parecia uma senhora de meia idade. Aos quarenta ela estava
morta. Deixou cinco filhos e um viúvo inconsolável por não ter mais o saco de
pancadas na mão. Segundo as más línguas, dizem que ele a espancava e depois
estuprava. Ela morreu de melancolia e o mais espantoso é que ninguém fez nada.
Ela nunca mais foi vista desde que casou, porém o marido sempre comparecia para
ver os amigos e para representar as famílias nas festas, sempre sozinho. E
pensar que esse foi o casamento dos sonhos da professora Raymonde.
Restaurandora
de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi
classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros
publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais
domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura,
cinema, e a paixão de escrever.
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