O sinal está fechado. Abriu, fechou de novo e tudo continua na
mesma, o trânsito parado, sem indício algum de solução nesse cruzamento
angustiante, cercado de arranha-céus ameaçadoramente inclinados sobre a
gente.
Sou agora o terceiro de uma longa fila em mais um engarrafamento de fim de tarde.
Ponho foco nas pessoas que atravessam na faixa, algumas fora dela
espremem-se por entre os carros como um bando de fantasmas encolhidos,
rostos borrados, esbarrando-se entre si num emaranhado de guarda-chuvas,
capas e sombrinhas.
Uma gradativa turbidez vai tomando conta da paisagem. Pressiono o
botão do desembaçador do para-brisas, que como mágica vai deixando tudo
limpo e transparente em instantes. Só a visibilidade se altera, o caos
permanece, o céu continua carregado, com nuvens baixas, cinzento ao
extremo.
Houve um tempo em que reagia diferente, ficava triste. Mas hoje
tanto faz a chuva ou o Sol. Nada muda, vou seguindo meu caminho como um
autômato, obedecendo a breves comandos, escravo dileto de um simples
instinto de conservação da espécie.
Reparo no painel o led do MP3 aceso. Uso o controle remoto,
inundando de imediato o ambiente enclausurado com o som de instrumentos
delicados, de sopro e corda. A música é romântica; pouco se me dá no
entanto, a letra já não me desperta interesse, a mínima emoção. Tudo
balela de falsos poetas, compondo sob a batuta de fórmulas comerciais,
sem um mínimo de sentimentos verdadeiros.
Apenas deixo-a tocar, numa sequência aleatória, e sequer me dou
conta das várias faixas idênticas, dos minutos passados no abstrato e
dos quilômetros percorridos na chuva, que vai lavando tudo pelas
sarjetas, escoando pelos bueiros, e sujando o inocente mar no seu
impulso final.
Encontro-me agora na pista central da avenida, desperto tendo que
entrar na próxima rua à direita. Sem ligar a seta e já fazendo a
conversão, ouço o ruído dos freios mais atrás, buzinas e os xingamentos
ocasionais. Já estou habituado a essa prática comum no trânsito. Se
esbarrar, a Seguradora tá aí e pronto. Tudo sem discussão alguma, sem
descer sequer as janelas indevassáveis pelo escuro filme que me protege
dos olhares alheios. Apenas um toque ao celular e o corretor resolverá o
incidente. Pra isso serve a apólice que pago. E pago pra usar, diga-se
de passagem !
Diferente da maioria não costumo colecionar os decantados bônus
cumulativos. Deixo-os aos sovinas de plantão. Que sofram por eles, que
discutam razões inexistentes pela noite adentro.
Atravesso incólume outros sinais; mais alguns quarteirões e chego
finalmente ao meu destino, o prédio cinza como a paisagem que o cerca,
sem uma árvore que quebre a monotonia do feio bairro. A garagem já quase
totalmente tomada, em sua grande parte por carros sobriamente pretos,
evidencia a nova tendência de mercado. Até bem pouco a maioria era
prata, como o meu, destoando agora, apagado num canto junto a um pilar
emborrachado em preto e amarelo. O zelador ausente, o elevador
felizmente vazio. Não estou para conversas com vizinhos, sobretudo com
os mais recentes, jovens bem sucedidos e tagarelas, com suas gravatas
listradas jogadas sobre os ombros, autênticos yuppies fora de moda.
Tenho evitado qualquer encontro, por vezes me retardando no carro,
remexendo o porta-luvas a procura de nada, escapando assim de um
boa-noite indesejado.
O elevador sobe com aquele zumbido peculiar do que dizem ser o
mais seguro veículo do século. Também pudera, com essa velocidade e
sozinho pela "estrada" !
No meu andar o sensor ilumina de pronto o hall e o velho tapete de
boas vindas em inglês. Preciso trocá-lo por outro que em nada me
contradiga... Nada de visitas, é o meu lema atual. Abro a porta e num
único passo ligo a TV no canal prefixado. Ouço fragmentos de um
noticiário, relatando a mesmice de sempre, servindo apenas como fundo
para um estrip-tease solitário enquanto caminho direto para o chuveiro,
atirando de passagem tudo ao cesto de vime no corredor anexo. Aciono o
misturador e me pergunto até quando a energia solar será eficaz nesse
período de chuva exagerada dos últimos dias. Há muito não faz Sol.
A água fria, a princípio nos pés, me faz recuar incontinenti.
Dentro em pouco porém vai aquecendo, ficando escaldante e enfumaçando
tudo. Regulo a válvula 1/4 do curso até um nível de temperatura
suportável e fico exposto à torrente que me jorra sobre as têmporas
grisalhas, sentindo ainda um latejar distante, que me persegue desde a
manhã. O xampú anticaspa arde-me os olhos; ergo a cabeça, direcionando
os finíssimos jatos diretamente no rosto, numa sensação
agradável, massageando ao mesmo tempo todos os músculos tensos, até o
pescoço. Nesse momento escuto lá fora o chiado característico dos pneus
dos carros deslizando pelo asfalto molhado. Imagino paralelas tortuosas
apagando-se aos poucos, uma após outra, carro após carro, num movimento
constante.
" Teu infinito sou eu, sou eu, sou eu..."
Reporto-me a uma velha canção, que tratava desse tema, misturando
paralelas infinitas à perversa juventude do coração, que só entende o
que é cruel ou paixão... Velhos tempos, sábios poetas.
Sinto uma lufada de ar frio, olho então pelo vitrô entreaberto,
vendo a fumaça revolvendo-se em rolos, e dou de cara com a luz a vapor
de sódio no poste da vila em frente, colorindo de dourado os grossos
pingos da chuva que cai numa extensa cortina do céu.
Assim fico, imóvel por um longo tempo, encostado aos belos azulejos
decorados, agora observando a espuma, que rodopia e desce lentamente
pelo ralo. Finalmente fecho o registro, desprendo a toalha do suporte e
sem ter o que fazer, enxugo-me com denôdo feminino, cada reentrância do
corpo, a barra do tecido felpudo vez por outra tocando o piso encharcado
do box.
Passo pelo closet, sentando-me na ponta da cama. Um desânimo
enorme se abate sobre mim. É sempre assim nesse momento, desde há muito.
Oscilo entre o pijama e outra peça qualquer. Pego o mais próximo, o
destino será o mesmo, o efeito idêntico nessa minha costumeira solidão.
Deixo-me cair sobre a cama, ainda nú; ligo outro televisor e de olhos
fechados de vez em quando confundo num delay as falas repetidas do
primeiro aparelho, ainda ligado na sala. Tenho preguiça de ir até lá
desligá-lo.
Alertado por uma pontada de enjôo lembro-me que não almocei hoje.
Esforço-me mentalmente p/ levantar e ir até a cozinha, o que consigo na
terceira tentativa. Preparo de forma maquinal um misto de queijo e
presunto, frio mesmo, apenas pra enganar a fome preenchendo o vazio do
estômago, tudo isso agregado ao metálico suco de laranja
industrializado, que por vezes mexe com a minha úlcera. Está consumada a
habitual e frugal refeição.
Sobre o módulo que guarda um esquecido aparelho de jantar, bule e
xícaras, a lâmpada dicróica queimou já tem um mês... Preciso lembrar de
comprar outra.
Durante a rápida escovadela nos dentes, o espelho entre pontinhos
de oxidação e outros tantos de creme dental reflete de esguelha um
rosto magro, a barba por fazer, de uns quatro dias, adiada mais uma vez
não sei até quando.
É hora então de algumas páginas do último livro de cabeceira,
durante as quais certamente anotarei algumas ideias para o novo conto
que estou escrevendo. Alguns minutos no entanto na mesma posição são o
bastante pra denunciar o quarto abafado e o corpo dolorido. Ligo o ar
condicionado, acentuado pela ação do ventilador de teto, e busco o
edredon enrolado ao viés da cama, tudo numa sequência lógica.
Quem sabe não fará frio na madrugada. Não quero ter de levantar só por causa disso.
Relaxo totalmente e adormeço assim, quase sem sentir, num breve suspiro de cansaço.
Desperto horas depois, banhado de suor, atiro longe o cobertor e
me delicio com o ar gelado percorrendo-me todo o corpo num arrepio. Vou
acabar pegando um resfriado...
Lembro-me da mansarda, do meu quartinho de dormir na infância e de
minha mãe me alertando cuidados com a pneumonia, que ceifava vidas a
roldão naquele tempo. Outros pensamentos correlatos se sucedem. Pego o
outro travesseiro, fiel ali, no lado vazio da cama o o acomodo entre os
joelhos, procurando uma postura mais adequada pra coluna já um tanto
doente.
Um filme com paisagens paradisíacas, de montanhas e mar rola na
TV, marcado por uma maçante música clássica de um autor absolutamente
desconhecido. Num impulso desligo tudo, inclusive os abajures nos
criados mudos. O quarto protegido por black-outs mergulha na total
escuridão. É hora de pegar no sono.
Preciso no entanto me esforçar pra dormir de novo, levando a
mente a vagar num exercício habitual por entre pensamentos antagônicos,
pulando de um a outro sem qualquer conexão aparente . Nada de contar
carneirinhos pulando o cercado da vovó, não funciona mais.
A insônia começa a ameaçar o sucesso do meu esquema, passa-se
muito tempo assim. Olho de momento em momento para o relógio, e chego a
me arrepender de não ter ficado assistindo ao filme. Quem sabe ligando o
Blu Ray agora...
Finalmente percebo que adormeci quando o sinal digital do
despertador começa a tocar num novo dia, seguramente mais chato que o
anterior. O telefone fixo toca, deixo-o tocar insistentemente. Não
atendo nem olho o identificador de chamadas sobre o aparador, e tanto
faz, ninguém me ligaria a essa hora, provavelmente seria engano e a
pessoa certamente sequer se desculparia pelo fato.
Detesto gente distraída e mal educada, principalmente pela manhã, com meu humor em baixa. Nem acordei direito.
" Vós sois o Sal da Terra ", disse Jesus.
E me pergunto que tempêro insôsso temos passado uns aos outros,
sem nada de bom a dizer, sem esperança alguma pra motivar qualquer boa
ação que seja. A vida quanto mais vazia mais pesada fica p/ se carregar
sozinho, e curioso que à medida que envelhecemos isso se torna
contundente demais.
" Vós sois a Luz do Mundo", prosseguiu Jesus.
Como iluminar algo se só temos experimentado uma treva absurda ? A alma constantemente imersa numa amargura danada...
Todos os amores se foram, esqueceram-se ou morreram, e no fim, a
boca que beija é a mesma que logo em seguida apedreja, proferindo
ironias, insultos e injúrias.
Há um século não vou à missa, que tanto me exortava ao perdão. Faz tanto tempo ...
Meus olhos ardem, vermelhos como os de um drogado, parece que
mais uma vez dormi pouco nessa semana, nada porém que lentes
fotocromáticas e um "expresso"
no barzinho da esquina não escondam do mundo. Odeio fazer café em casa, o aroma me traz lembranças antigas que procuro esquecer.
Pego mais um trânsito medonho e após várias peripécias estou de
volta ao escritório. Evito como posso as mesmas caras de sempre; gente
fútil, desorganizada, banal...
Subo calado dois lances de escada, sei que a essa hora minha voz
soará uma oitava mais grave, tornando-me ainda mais desagradável e
taciturno, como dizem de mim pelas costas, nos corredores. Felizmente
não mais exerço cargo de chefia, promoção que dispensei há tempos, não
necessito mais falar, tampouco sorrir a todos p/ obter resultados quase
sempre deploráveis na repartição. A imperfeiçõa humana tem me incomodado
sobremaneira. Nao vejo a hora de me afastar de todos de uma vez, me
aposentar e sumir do mapa o quanto antes, comprando uma casinha pra lá
do fim do mundo e como um eremita passar os dias lendo e escrevendo,
escrevendo e lendo, vendo gente somente quando sumamente necessário.
É, a vida vai deixando de ser plena, bobagem continuar resistindo
à fobia social que me assalta e aos demais sinais de perturbação
psíquica que certamente me acontecerão daí pra frente. Tenho relativa
consciência disso.
E assim, nessa repetição de pensamentos mais um dia terá ido
embora, com outro fim de tarde de trânsito ruim e chuva sem graça.
O certo é que daqui a pouco estarei voltando pra casa.
Nilson Ribeiro, poeta ao acaso desde menino, fluminense de 57 anos, dos quais 42 de labuta, lidando com gente de todo quilate, fiz disso inspiração diária pra aguentar os trancos da vida.
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