Antigamente, as geladeiras eram enormes
por fora e pequenas por dentro. Serviam para resfriar umas garrafas de
água, manter a salada fresca e a manteiga no ponto, mas não eram, como
hoje, bons depósitos de comida. Naquela época não existia ainda a idéia
das compras do mês, e as refeições eram preparadas com o que se achasse
no comércio da vizinhança: mercearia, açougue, peixaria, frutas e
verduras… Perto da nossa casa, no Bairro Peixoto, havia até uma
avicultura que vendia galinhas, patos e codornas vivos (eu morria de
pena de todos e mal tinha coragem de passar na porta, mas isso, é claro,
não impedia que adorasse o galeto assado da outra esquina).
Naquelas geladeiras desajeitadas, o
congelador era um compartimento minúsculo, na parte superior, que – pelo
menos na minha lembrança — vivia dando problema: a porta travava, as
formas grudavam e volta e meia tinha que se desligar a traquitana
inteira para descongelar. Tudo por causa do gelo que crescia de forma
completamente desordenada. Valia tudo para tentar domesticá-lo, de
banhos de água quente a cutucadas com objetos pontiagudos, duas técnicas
de resto condenadas pelos fabricantes.
Ainda assim, aqueles congeladores gauche
tinham seu encanto. Quando uma criança queria saber como era a neve,
bastava abri-los, raspar com uma colher o gelo mais fresco e pronto, lá
estava um punhado de neve ao alcance da mão. Alguns produziam até
pequenas estalactites muito educativas.
Apesar da profusão de gelo nos lugares
errados, o gelo foi um artigo de luxo durante boa parte da minha
infância. A sua fabricação ficava por conta de duas formas de alumínio
com grades móveis que, em tese, soltariam os cubinhos com mais
facilidade, mas que, na prática, sempre emperravam. O gelo que produziam
era pouco e, principalmente, muito demorado. Uma vez esvaziadas, só no
dia seguinte haveria nova leva.
Sacos de gelo como os que compramos hoje
ainda não existiam. Quando alguém dava festa e precisava de gelo em
quantidade, mandava vir uma barra do depósito mais próximo. Ainda assim,
a idéia de que gelo era algo “difícil” condicionava de tal forma o modo
como o consumíamos que, mesmo diante de uma barra inteira, valia a
parcimônia do dia-a-dia: naqueles tempos, “bebida com gelo” era um copo
de qualquer coisa com duas insignificantes pedrinhas. Copos com mais
gelo do que bebida são invenção relativamente recente.
Quando passava por um entregador levando
as barras, em geral protegidas do calor por serragem, eu olhava para
aquela abundância com o mesmo misto de emoção e respeito com que
Amundsen olhava para o Polo Sul. Que milagre, aquele gelo todo
desfilando num dia de verão! Mais atraentes do que as grandes barras, só
mesmo os pedaços de gelo seco que equipavam as carrocinhas da Kibon, e
que faziam fumaça quando eram postos na água.
Por falar em Kibon, nos congeladores
minúsculos d’antanho cabia uma outra coisa além das duas forminhas de
gelo: um tijolo de sorvete ou, como dizia a caixa, “sorvex”. O tijolo,
para quem não chegou a conhecê-lo, era um retângulo de uns vinte
centímetros de comprimento, que se servia num prato e do qual se
cortavam fatias com uma faca. Em tese, funcionava muito bem, mas a
prática podia ser complicada. É que o tijolo era embrulhado em cartão,
sem isolamento térmico, e fatalmente chegava meio derretido em casa. Ia
direto para o congelador — mas, como as geladeiras não eram lá aquelas
maravilhas, nunca chegava a gelar de todo. O pior era quando chegava tão
derretido, mas tão derretido, que escorria pelo fundo do congelador.
Grande lambança!
O sabor mais comum era o napolitano, uma
péssima idéia de chocolate, creme e morango. Todo mundo brigava pelo
chocolate e deixava o morango de lado. As mães ficavam muito nervosas
com isso. Cansei de ver tijolos desfigurados, com o chocolate e o creme
cavadinhos, e o morango intacto. Alguém da Kibon deve ter visto a mesma
coisa, porque algum tempo depois foi lançado o tijolo carioca,
xadrezinho, que só tinha chocolate e creme.
O carioca também fez sucesso nos copinhos
que, durante muito tempo, só foram oferecidos no sabor mais sem graça
do mundo: creme. Os copinhos eram quadrados, de papel, e eram vendidos
nos ambulantes que circulavam pela cidade. O nosso freguês ficava na
praça Edmundo Bittencourt, ao lado do rinque de patinação. Ele vendia
toda a linha de sorvetes, embora nem sempre tivesse tijolos, e mais um
monte de coisas gostosas que a Kibon não fabrica mais, como delicados,
jujubas e ki-bambas. No fim da tarde, recolhia-se ao depósito da rua
Santa Clara, onde às vezes parávamos para uma casquinha antes ou depois
da praia. Era deste depósito que vinham os tijolos lá de casa.
Mais tarde, quando os congeladores
ficaram maiores, apareceu um produto revolucionário no planeta sorvete: a
lata. A lata se conservava muito melhor do que os tijolos, e não
deixava que o sorvete derretesse pelos cantos. Além disso, tinha modelos
lindamente decorados, que mudavam conforme a temporada, e podia ser
reaproveitada de mil maneiras. Durante muitos anos, na nossa casa, os
barbantes foram guardados numa lata azul, com lápis pintados na lateral.
Como saudade não tem idade, há diversas
dessas latas sendo vendidas atualmente no mercadolivre, site de leilões
onde se encontra de tudo; mas delícia mesmo era trazê-las cheinhas para
casa, e dar cabo do conteúdo num domingo de sol e preguiça.
(O Globo, Segundo Caderno, 2.2.2012)
Um comentário:
Boa noite!!
Ah!!!!Que texto saudosista,lindo!!!!Literalmente bem criativo, bem redigido, com uma linguagem simples e pitoresca..Parabéns a Cora Rónai, qq nos proporcionou durante a leitura do seu texto, um belo túnel do tempo...
Um abraço,
Ana Maria
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