A casa antiga do
povoado ficara fechada durante algum tempo. A família se transferiu para a
cidade grande. Passados alguns anos o herdeiro do imóvel chegou de volta à
cidade, se aproximou da praça central com um carro importado dos mais luxuosos
e trouxe na bagagem uma bela mulher e o cão, um belíssimo Afeganistão bege.
Chegaram para implantar um projeto que traria dividendos ao povoado. Era algo
relacionado à pesca de rio, pois parte do rio cortava as terras da família. E o
povoado ficou em polvorosa, pois todos iam ganhar. Do dono do boteco até o
padre que lembrou que a igreja carecia de um sino. E o projeto entrou em andamento. Ele
recuperou a casa grande que ficara fechada durante muito tempo, abriu um
escritório na frente da praça, contratou empregados para ajudar a sua mulher;
era um jardineiro e uma senhora, parentes do jardineiro, e dos filhos que
moravam na parte dos fundos da casa. E logo a reforma da casa e os jardins
ficaram uma beleza e passaram a receber todos os que chegavam ao povoado para
conhecerem o empreendimento. Até um hotel seria construído. Dinheiro para isso
ele possuía e foram longos meses de muitas viagens para conseguir permissão dos
órgãos competentes para usar, não só a faixa do rio que cortava as suas terras,
mas também a faixa do rio que contornava a cidade e fazia um meandro em direção
à igreja. Depois de “molhar” as mãos de muitos dignitários, a documentação
necessária para iniciar o empreendimento deslanchou. Foi tudo ao mesmo tempo, e
a cidade virou um canteiro de obras. Já não era mais um simples povoado. Aos
poucos foram chegando os investidores. Como o complexo seria voltado à pesca de
entretenimento no rio, chegaram os organizadores de eventos e foram se
instalando aonde dava. O dono do boteco colocou a família, mulher e filhos, no
rancho e alugou os quartos da pequena morada. Até a casa do padre hospedou
alguns forasteiros. Todos queriam se instalar na cidade e cada qual ganhar o
seu quinhão. E no meio de tanto movimento, chegaram as senhoritas de vida
fácil. Isto é o que dizem, pois, particularmente, acho a vida delas muito
difícil. E aí aconteceu de aparecer na cidade um maluco, que veio a serviço das
distintas senhoritas. Era o “faz-tudo” delas e gostava de se embebedar. E o
investidor, tão assoberbado com toda a correria, mal chegava em casa; virou
visita. E a jovem mulher dele que viera de uma família muito tradicional e sem
qualquer mácula - coisa muito difícil nestes tempos cabeludos – andava tão
solitária que foi passar uns tempos com a família dela e lá aproveitou e foi
até o colégio onde estudara fazer uma visita muito especial: uma freira muito
afeiçoada a ela. E logo que ela chegou a freira notou que algo não ia bem, e
ela desabafou: não tinha amigos, vivia isolada, e que a vida não ia tão bem
assim. E a freira perguntou: porque ela não dava aulas na cidade? Seria o
ideal, afinal ela era professora, e logo em seguida deveria arranjar uma
gravidez, o filho viria preencher o vazio da vida dela. Ela voltou mais
conformada. Na chegada falou com o marido da idéia de abrir uma escola, chegou
até sugerir que a escola poderia ter o nome da senhora mãe dele, já falecida, e
ele ficou de pensar no assunto e não se falou mais nisso. E ela passava os dias
de tagarelice com os empregados da casa e as visitas de final de semana. Como
estava decidida a ter um filho, o marido a escutou, saiu, tomou um pileque, e
chegou em casa carregado pois batera o carro. A mulher que estava em companhia
dele foi para o hospital mais próximo, mas disso a mulher dele nunca soube e
tratou, com a ajuda do jardineiro, de cuidar dos ferimentos dele. E os dois foram
se revezando nos cuidados, até que, certa noite, ele já estava melhor, e como
fazia muito calor, ela foi se banhar no rio e o empregado ficou observando a
distancia. Foi quando o marido dela viu e disse: então, anda de olho na minha
mulher, seu safado! O rapaz tratou de desfazer o equivoco e foi para o quarto
dele. Na manhã seguinte era dia de dar banho e escovar o cachorro que era o
xodó dela e o orgulho do marido, pois tanto o cão, quanto o carro, chamavam a
atenção aonde chegavam. Ele costumava sair com o cão dentro do carro e
estacionava na praça e quando olhava tinha uma aglomeração em torno dos dois,
do carro e do cão. E ele se fazia de surpreso e chamava a todos para assistir o
espetáculo e o rapaz caprichava na escovação do pêlo do animal. Depois do dia
do incidente com o banho da patroa ele pouco subia na varanda da casa onde ela
costumava ficar lendo ou bordando, e sempre gostava de mostrar o que estava
fazendo. Certa noite, ela chamou o rapaz e pediu a ele que preparasse uma
bebida para os dois e viesse conversar um pouco com ela. Ele preparou a bebida
dela, se desculpou e desceu. Na semana seguinte o marido foi viajar novamente e
recomendou: nada de folga com o empregado, essa gente tem que ser tratada só na
chibata. Ela não se importou com o comentário do marido e os dias foram se
tornando mais quentes e ela passou a tomar banho de rio todas as tardes ao
anoitecer porque era mais fresco. Vestia uma túnica leve sobre o maiô e ia para
o rio tomar banho. Na volta, o marido chegou exatamente quando ela acabara de
chegar na casa. Depois de cumprimentar o marido, chamou o empregado, esperou o
rapaz subir para receber as ordens da patroa: era para trazer um balde de gelo
e algo para comer enquanto ela ia se arrumar. Quando ela virou as costas o
marido deu uma pancada na cabeça do rapaz e jogou o pobre coitado pelo
balaustre da varanda e o rapaz fraturou o pulso e o joelho. Quando ela ouviu o
barulho e veio correndo, o rapaz estava estirado no jardim e parecia morto e o
marido dela o estava socorrendo e dizia: ele é maluco, pulou da varanda. Ela
foi ajudá-lo e colocou o rapaz numa sala próxima à cozinha e pediu ao marido:
vá buscar ajuda. Ele saiu e demorou a voltar. Quando chegou disse que não
encontrara ninguém que entendesse medicina no povoado. Como ela aprendera algo
sobre primeiros socorros, passou a cuidar do empregado pessoalmente até ele se
restabelecer; ficou manco de uma perna e o marido passou a chamá-lo de
aleijado. E o pulso também ficou com seqüelas. O verão estava chegando ao final
e um vento frio começou a soprar e ela se recolheu, passou a ficar na sala, com
a lareira acesa, todas as janelas fechadas e o marido, mais uma vez, foi
viajar. Desta vez foi para ficar mais tempo. E ela contratou mais uma ajudante.
Até que certa noite, já madrugada, ela sentiu alguém entrar no quarto e meio
sonolenta ela abraçou o marido e pediu: vamos ter um filho? E foi uma noite de
paixão. No dia seguinte ela não saiu da cama cedo, só desceu na hora do almoço
e perguntou para o rapaz: onde foi o meu marido? Ele respondeu: ele está
viajando, não voltou ainda. Aí ela pensou no sonho que teve e ficou preocupada
com sua saúde mental. Subiu e foi examinar a cama, estava com roupa limpa, a
nova empregada havia trocado tudo. Ela foi tomar outro banho, não notou
qualquer marca diferente em seu corpo e pensou: realmente um sonho que eu tive.
Passado alguns dias o marido chegou e ela começou a amanhecer enjoada, já não
comia de tudo e achou melhor viajar para consultar um médico. Fez os exames e o
médico deu-lhe a notícia: você está grávida. E ela disse: isso é impossível. E
chorando, explicou que o marido não tocava em seu corpo há muito tempo, ele
estava sempre cansado, mas o médico afirmou: é gravidez. Ela voltou para casa,
chegou cansada e o marido não se encontrava. O rapaz veio tirar as bagagens do
carro e levou para o quarto dela. Ela entrou no banho e lavou até a alma e ao
entrar no quarto, o rapaz ainda estava lá. E ela perguntou: o que você quer?
Ele não respondeu nada e saiu do quarto. Ela desceu para jantar e esperou até
tarde da noite, e, naquela noite, o marido não voltou. Pela madrugada ela
acordou com alguém dentro do quarto e silenciosamente esperou. Ele deitou na
cama ao seu lado e a abraçou com tanto carinho que ela se deixou ficar e amar.
E depois do amor ela perguntou: foi você na outra noite? Ele respondeu que sim.
Que desde que o marido dela chamou a atenção dele por estar olhando para ela,
até então ele não havia enxergado a mulher, mas daquele momento em diante, ela
não saiu mais do seu coração e ela sentiu exatamente a mesma coisa. Disse que
desde que o marido dissera que esta gente tem que ser tratada na chibata, no
subconsciente ela só pensara nele e no tórax largo e forte que ele tinha. Aí
ela lhe disse: vou ter um filho teu. Despediram-se, ele foi para o quartinho
dos fundos da casa e ela, de camisola branca, saiu caminhando pela rua rumo ao
meandro e lá ela entrou na água e foi afundando tão devagar, pois sabia que
carregava no ventre um anjo, o fruto de uma violação, que poderia nascer
mulato, o marido era loiro, e ela castanha de pele muito branca. Quando o dia
amanheceu, viram um tecido boiando e foram ver o que era; era um pedaço da
camisola de renda que flutuava. Procuraram o dia inteiro, a turma de buscas
encontrou o seu corpo que estava preso em umas madeiras que estavam boiando e
alguns galhos de árvore que pareciam enlaçar o seu corpo e seus braços rígidos
embalavam o ventre como uma mãe protegendo o filho. Ela foi levada para a
cidade mais próxima para ser preparada para voltar para sua gente e o médico,
ao dar o atestado de óbito, perguntou ao marido, que se encontrava junto a um
amigo que lhe dera carona, se ela estava grávida. O marido disse que não. O
medico a examinara e disse, uma gravidez de 90 dias aproximadamente. Ele ficou
enlouquecido e disse: mato aquele desgraçado! E pediu para voltar para casa. Lá
chegando, encontrou o cão morto com uma punhalada certeira e ao lado do cão,
com um tiro de espingarda na cabeça, jazia o corpo do jardineiro, o do tipo que
só na chibata se resolveria, o do homem que ele jogou da sacada e passou a
chamar de aleijado. Olhou para o corpo do rapaz e ele parecia sorrir e lembrou
dela morta enlaçando o ventre e também parecia sorrir. E o carro dele, na
garagem, estava destroçado, a lataria fora toda cortada, o motor arrancado e
incendiado, os estofamentos de couro só a base metálica sobrou. Foi a maior
vingança que já se viu naquele povoado. E aí vem a lembrança dos antigos que
dizia: se não podes com o dono, vingue-se no cão. Ele vingou a sua amada e o
prepotente e orgulhoso patrão perdeu a mulher, o cão e o carro, pois o
jardineiro sabia que ele ia morrer mesmo, era apenas questão de horas. E ele,
no desespero, se resolveu mais rápido. Quanto ao empreendimento, ficou tudo
pelo começo. Ninguém teve o dinheiro para dar continuidade no que seria o
crescimento da cidade, e os forasteiros que investiram lá, perderam tudo. O
povoado continua como no início, tem uma praça, uma igreja, um meandro e um
boteco. As ruas, sem calçamento algum, casinhas modestas. E a margem esquerda
do meandro, o caminho que leva à casa grande, que hoje está caindo por falta de
conservação, e o investidor, o dono do dinheiro, o desajustado, o adulto
rebelde, esse nunca mais foi visto. O padre, na última viagem que fez à
capital, foi fazer uma visita aos pais da falecida. Estavam inconformados com a
fatalidade. Para eles, ela foi se banhar a noite, como costumava fazer, e ficou
presa nos galhos. Tão jovem e trazia um anjo no ventre. Os pais não se
conformavam de perder a filha e o neto. Mas o funcionário do bordel, o maluco,
esse disse ter visto ela passar de camisola rumo ao meandro e o padre não
contestou. Perguntou pelo viúvo e os pais da moça disseram que a dor foi tão
grande pela perda da mulher e do filho que se tornara um alcoólatra – isso ele
também já era – e desapareceu, foi viajar e não mais voltou. Mas, no povoado,
conta-se que ele foi visto em outra cidade pequena, passeando com uma das moças
damas do bordel, que também foi dado por desaparecida e que estavam a bordo de
um carro ainda mais luxuoso que o outro e pararam para almoçar em um
restaurante da praça e pagaram o funcionário da casa para dar voltas na praça
com dois cães, um macho e uma fêmea. O macho usava uma coleira de couro marrom
com uma placa de outro amarelo com o nome do animal e do proprietário e a fêmea
usava uma coleira preta cravejada de diamantes e uma placa em forma de coração
também com o nome dela e do proprietário. Isso é o boato que está correndo, mas
até o padre acredita ter visto os dois e tentou alcançá-los, mas o carro deles
era muito veloz. E conta-se, também, que alguém veio, pagou os empregados,
fechou a garagem com os traços que sobraram do carro, que as roupas foram
distribuídas para os carentes e a casa foi fechada. Já não se pode chegar
sequer na entrada principal que fica próximo do meandro, tal o matagal que está
cobrindo tudo. E o povoado vive na maior miséria e dizem que em noite de lua
cheia os três choram horas e horas, ela, ele e o bebê. E o cão passa a noite a
ladrar. Todos já saíram em busca na cidade para ver de onde vem o som e o som
vem do rio. O padre já benzeu a casa, rezou missa, mas nada adianta, o lamento
deles é muito triste.
Restaurandora
de bens culturais, pintora, escultora, ourives, Em 2010 foi
classificada em concurso internacional em contos e cronicas, Três livros
publicados e uma coletânea do concurso Edições AG. Mora em Florianópolis, na ilha, casada, três filhos, gosta de animais
domésticos, de cultivar plantas, reunir os amigos, viajar, leitura,
cinema, e a paixão de escrever.
Um comentário:
Muito linda a história. Envolvente.
Beth
Postar um comentário