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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O congelador e os tijolos - Cora Rónai


Antigamente, as geladeiras eram enormes por fora e pequenas por dentro. Serviam para resfriar umas garrafas de água, manter a salada fresca e a manteiga no ponto, mas não eram, como hoje, bons depósitos de comida. Naquela época não existia ainda a idéia das compras do mês, e as refeições eram preparadas com o que se achasse no comércio da vizinhança: mercearia, açougue, peixaria, frutas e verduras… Perto da nossa casa, no Bairro Peixoto, havia até uma avicultura que vendia galinhas, patos e codornas vivos (eu morria de pena de todos e mal tinha coragem de passar na porta, mas isso, é claro, não impedia que adorasse o galeto assado da outra esquina).
Naquelas geladeiras desajeitadas, o congelador era um compartimento minúsculo, na parte superior, que – pelo menos na minha lembrança — vivia dando problema: a porta travava, as formas grudavam e volta e meia tinha que se desligar a traquitana inteira para descongelar. Tudo por causa do gelo que crescia de forma completamente desordenada. Valia tudo para tentar domesticá-lo, de banhos de água quente a cutucadas com objetos pontiagudos, duas técnicas de resto condenadas pelos fabricantes.
Ainda assim, aqueles congeladores gauche tinham seu encanto. Quando uma criança queria saber como era a neve, bastava abri-los, raspar com uma colher o gelo mais fresco e pronto, lá estava um punhado de neve ao alcance da mão. Alguns produziam até pequenas estalactites muito educativas.
Apesar da profusão de gelo nos lugares errados, o gelo foi um artigo de luxo durante boa parte da minha infância. A sua fabricação ficava por conta de duas formas de alumínio com grades móveis que, em tese, soltariam os cubinhos com mais facilidade, mas que, na prática, sempre emperravam. O gelo que produziam era pouco e, principalmente, muito demorado. Uma vez esvaziadas, só no dia seguinte haveria nova leva.
Sacos de gelo como os que compramos hoje ainda não existiam. Quando alguém dava festa e precisava de gelo em quantidade, mandava vir uma barra do depósito mais próximo. Ainda assim, a idéia de que gelo era algo “difícil” condicionava de tal forma o modo como o consumíamos que, mesmo diante de uma barra inteira, valia a parcimônia do dia-a-dia: naqueles tempos, “bebida com gelo” era um copo de qualquer coisa com duas insignificantes pedrinhas. Copos com mais gelo do que bebida são invenção relativamente recente.
Quando passava por um entregador levando as barras, em geral protegidas do calor por serragem, eu olhava para aquela abundância com o mesmo misto de emoção e respeito com que Amundsen olhava para o Polo Sul. Que milagre, aquele gelo todo desfilando num dia de verão! Mais atraentes do que as grandes barras, só mesmo os pedaços de gelo seco que equipavam as carrocinhas da Kibon, e que faziam fumaça quando eram postos na água.
Por falar em Kibon, nos congeladores minúsculos d’antanho cabia uma outra coisa além das duas forminhas de gelo: um tijolo de sorvete ou, como dizia a caixa, “sorvex”. O tijolo, para quem não chegou a conhecê-lo, era um retângulo de uns vinte centímetros de comprimento, que se servia num prato e do qual se cortavam fatias com uma faca. Em tese, funcionava muito bem, mas a prática podia ser complicada. É que o tijolo era embrulhado em cartão, sem isolamento térmico, e fatalmente chegava meio derretido em casa. Ia direto para o congelador — mas, como as geladeiras não eram lá aquelas maravilhas, nunca chegava a gelar de todo. O pior era quando chegava tão derretido, mas tão derretido, que escorria pelo fundo do congelador. Grande lambança!
O sabor mais comum era o napolitano, uma péssima idéia de chocolate, creme e morango. Todo mundo brigava pelo chocolate e deixava o morango de lado. As mães ficavam muito nervosas com isso. Cansei de ver tijolos desfigurados, com o chocolate e o creme cavadinhos, e o morango intacto. Alguém da Kibon deve ter visto a mesma coisa, porque algum tempo depois foi lançado o tijolo carioca, xadrezinho, que só tinha chocolate e creme.
O carioca também fez sucesso nos copinhos que, durante muito tempo, só foram oferecidos no sabor mais sem graça do mundo: creme. Os copinhos eram quadrados, de papel, e eram vendidos nos ambulantes que circulavam pela cidade. O nosso freguês ficava na praça Edmundo Bittencourt, ao lado do rinque de patinação. Ele vendia toda a linha de sorvetes, embora nem sempre tivesse tijolos, e mais um monte de coisas gostosas que a Kibon não fabrica mais, como delicados, jujubas e ki-bambas. No fim da tarde, recolhia-se ao depósito da rua Santa Clara, onde às vezes parávamos para uma casquinha antes ou depois da praia. Era deste depósito que vinham os tijolos lá de casa.
Mais tarde, quando os congeladores ficaram maiores, apareceu um produto revolucionário no planeta sorvete: a lata. A lata se conservava muito melhor do que os tijolos, e não deixava que o sorvete derretesse pelos cantos. Além disso, tinha modelos lindamente decorados, que mudavam conforme a temporada, e podia ser reaproveitada de mil maneiras. Durante muitos anos, na nossa casa, os barbantes foram guardados numa lata azul, com lápis pintados na lateral.
Como saudade não tem idade, há diversas dessas latas sendo vendidas atualmente no mercadolivre, site de leilões onde se encontra de tudo; mas delícia mesmo era trazê-las cheinhas para casa, e dar cabo do conteúdo num domingo de sol e preguiça.
(O Globo, Segundo Caderno, 2.2.2012)

Um comentário:

Nana disse...

Boa noite!!
Ah!!!!Que texto saudosista,lindo!!!!Literalmente bem criativo, bem redigido, com uma linguagem simples e pitoresca..Parabéns a Cora Rónai, qq nos proporcionou durante a leitura do seu texto, um belo túnel do tempo...
Um abraço,
Ana Maria